A Liberdade e seus inimigos
Deve o Tribunal Constitucional declarar a extinção de partidos que, sendo racistas, fascistas ou militarizados, sejam inimigos da Liberdade e do projeto constitucional triunfante em 2 de abril de 1976? Com certeza.
Há mais de 27 anos, o Tribunal Constitucional virou a cara e soprou para o ar, pela primeira vez.
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Há mais de 27 anos, o Tribunal Constitucional virou a cara e soprou para o ar, pela primeira vez.
Apesar de um trabalho incansável (e de elogiar), por parte do Ministério Público, aquele guardião da Constituição e das liberdades fundamentais decidiu não declarar a extinção do primeiro movimento nacionalista de extrema-direita – o Movimento de Ação Nacional (MAN) –, por considerar não haver interesse nessa ilegalização, em função da sua autoextinção. Com essa recusa, o Tribunal Constitucional impediu que o Ministério Público acusasse e levasse a julgamento os seus principais cabecilhas, por crime punido com pena de dois a oito anos.
Numa contradição deveras incompreensível, já não faria o mesmo com outro partido extremista e armado de extrema-esquerda – a Força de Unidade Popular (FUP – 25 de Abril) –, cuja ilegalização declarou, com fundamento na sua natureza armada e paramilitarizada, que é (ainda hoje) expressamente proibida pela Constituição portuguesa (cfr. artigo 46.º, n.º 4).
Voltou a fechar os olhos quando um grupo de extremistas capturou o Partido Renovador Democrático (PRD), originariamente fundado para apoiar o General Ramalho Eanes, através da inscrição dos militantes suficientes para tomar, por dentro, aquele partido, em 17 de março de 2000, mudando-lhe os estatutos, o símbolo, o programa político e, até, o nome! Esse partido chama-se Partido Nacional Renovador ou PNR, que, hoje, se esconde por trás de um novo nome: Ergue-te!
Fê-lo porquê?!? Obviamente, porque, caso tivesse que recolher as 7500 assinaturas de eleitores que a lei exige, jamais aqueles nacionalistas de extrema-direita teriam conseguido fundar o seu partido.
Continuou surdo e mudo, enquanto proliferaram declarações públicas ameaçadoras, cartazes a enviar estrangeiros para a sua terra e até quando, em páginas de acesso livre, na Internet, eram difundidos ideais completamente contrários ao humanismo, ao Estado de Direito democrático, ao pluralismo e às liberdades individuais.
Persiste em fingir que não vê quando são ameaçados certos grupos étnicos minoritários, quando se mandam, “para a terra delas” (sic), deputadas portuguesas nascidas num território que, outrora, integrou, pelo uso da força militar, o nosso país, ou quando se perseguem e ameaçam, nas redes sociais e outros espaços internáuticos, aqueles que deles pensam diferente.
Mais do que isso, insiste em fechar os olhos ao financiamento destes movimentos e partidos, não se inquietando com a origem dos fundos que lhes permitem fazer passar o seu discurso de ódio, através das novas plataformas tecnológicas, sem que haja direito ao contraditório.
Bastará ao Tribunal Constitucional olhar para o projeto de Estatutos de um partido e verificar se ele é tão ingénuo, ao ponto de dizer, palavra por palavra, que é “racista” ou “fascista”, ou que desrespeita os valores fundamentais de um Estado de Direito democrático?
Bastará olhar para o símbolo e constatar que ele não utiliza um facho ou a efígie de António de Oliveira Salazar?
Bastará ficarmos sentados no remanso dos nossos gabinetes e nem sequer percorrer as páginas de redes sociais desses movimentos e partidos, dos seus membros e doutrinadores, os facebooks, os twitters ou, simplesmente, as suas declarações públicas?
Evidentemente, o Direito Constitucional – e, mais do que isso, a Democracia (!) – não pode contentar-se com um simulacro de controlo jurisdicional. Se é certo que, numa sociedade aberta e plural, deve ser respeitada a liberdade de expressão e, através dela, a liberdade de discordância, não é menos certo que essa Liberdade só resistirá enquanto aqueles que dela se servem para instituir regimes autoritários não demonstrem querer conquistar o poder para, depois, a destruir. Talvez por isso, a Alemanha, saída dos horrores do III Reich, tenha consagrado na sua Constituição (cfr. artigo 21.º, n.º 2) a proibição de criação de partidos que pretendam colocar em causa a ordem constitucional.
A Liberdade só pode ser preservada se os seus inimigos forem denunciados e combatidos. Talvez por isso, Louis de Saint-Just alertava: “pas de liberte pour les ennemis de la liberté.”
Embriagados – e, tantas outras vez, anestesiados – pela ânsia de eficácia no combate à atual pandemia, todos os governos (dos mais conscienciosos, aos mais totalitários) têm imposto sucessivas medidas que não só são contrárias às mais fundamentais tradições de Liberdade e de Democracia, como fazem temer pelo aumento desmesurado do poder asfixiante das instituições públicas sobre os indivíduos. Ainda esta semana, o Relatório Anual da Intelligence Unit do The Economist demonstrava uma alarmante regressão do número de regimes democráticos (116 regrediram o seu nível de democraticidade) e uma descida preocupante de Portugal nesse “ranking”, passando do nível de democracia plena para o nível de democracia com falhas.
Deve o Tribunal Constitucional declarar, então, a extinção de partidos que, sendo racistas, fascistas ou militarizados, sejam inimigos da Liberdade e do projeto constitucional triunfante em 2 de abril de 1976?
Com certeza.
Só não o deverá fazer se esses partidos aceitarem (ou se conformarem com) o sistema.
Sim, o sistema.
O sistema em que se respeita o Outro. O sistema em que as nossas diferenças não são fonte de discriminação, de ameaça e de humilhação. O sistema em que a Liberdade de sermos quem ousamos ser não é esmagada pela prosápia discursiva de quem usa o espaço público para difundir ódio e, com isso, arrebanhar uns votos.
Continuará, sempre, a haver Liberdade. Mas também os seus inimigos. À espreita.
Professor de Ciência Política na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e ex-assessor do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional