A imprevisibilidade na Política
Apesar das crises recentes dos últimos 20 anos, da imensa literatura científica disponível e dos inúmeros avisos dos especialistas, os governos pouco ou nada fizeram para antecipar a “next pandemic”.
A imprevisibilidade na governação dos desígnios dos povos e das nações é uma problemática antiga e está, normalmente, associada a crises ou acontecimentos disruptivos que colocam em causa a harmonia da comunidade. Os políticos assumem-na e a opinião pública aceita-a como uma “válvula de escape” ou até “desculpa” para justificar as consequências negativas de determinado acontecimento. Os contornos aparentemente imprevisíveis de uma ocorrência específica servem, em muitos casos, para libertar os governantes da malha do escrutínio aos seus actos. Há uma certa desresponsabilização do poder político que pode ser mais ou menos válida consoante o grau de imprevisibilidade. Desobriga também a opinião pública a qualquer esforço cívico no apuramento de responsabilidades
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A imprevisibilidade na governação dos desígnios dos povos e das nações é uma problemática antiga e está, normalmente, associada a crises ou acontecimentos disruptivos que colocam em causa a harmonia da comunidade. Os políticos assumem-na e a opinião pública aceita-a como uma “válvula de escape” ou até “desculpa” para justificar as consequências negativas de determinado acontecimento. Os contornos aparentemente imprevisíveis de uma ocorrência específica servem, em muitos casos, para libertar os governantes da malha do escrutínio aos seus actos. Há uma certa desresponsabilização do poder político que pode ser mais ou menos válida consoante o grau de imprevisibilidade. Desobriga também a opinião pública a qualquer esforço cívico no apuramento de responsabilidades
Podemos aceitar esta abordagem, se partirmos do princípio que esses acontecimentos são de facto imprevisíveis e que a sua origem ou consequências não resultam de más decisões políticas. A Queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética foram dois acontecimentos totalmente imprevisíveis e com repercussões sistémicas. Ninguém os previu (pelo menos daquela forma abrupta). Não faria qualquer sentido procurar responsáveis ou culpabilizar alguém pelo acontecimento. Diríamos que era a História a seguir o seu curso natural. Para muitos, aliás, era a História a chegar ao seu fim (mais uma vez, diga-se).
A experiência mostra-nos, no entanto, um outro ângulo desta problemática que não devemos alhear, porque será, porventura, aquele que mais interessa no âmbito do processo de decisão e comunicação política. Aquilo que a observação empírica nos diz é que muitas vezes os tais acontecimentos imprevisíveis não são, na verdade, assim tão imprevisíveis. Os modelos de previsão, com mais ou menos amplitude, e os cenários prospectivos, mais ou menos imaginativos – embora nalguns casos com um elevado grau de sofisticação –, permitem dotar os decisores políticos de informação suficiente para anteciparem acontecimentos indesejáveis ou crises.
Além das qualidades inatas do seu líder e da competência das suas equipas técnicas, a capacidade para um Governo lidar com a incerteza na gestão política pressupõe duas coisas: elaboração de cenários e previsão de probabilidades. Um trabalho que deve ser feito por entidades independentes (podem ser públicas, mas despolitizadas) e think tanks, dotados de gente com conhecimento e elevada experiência prática, com verdadeira capacidade de apoio à decisão. Os poucos que existem em Portugal não têm expressão ou influência no processo de planeamento ou decisão política. Quem conhece minimamente estas dinâmicas sabe que, na sua maioria, ficam circunscritas ao aparelho político-burocrático dos gabinetes, limitando a criatividade e o espectro multidisciplinar que se exigem nestas decisões.
A observação histórica também nos tem ensinado que, não raras vezes, a ocorrência de uma tragédia aparentemente surpreendente foi, afinal, precedida de um exercício prospectivo válido e bem sustentado, nalguns casos reforçado com inúmeros avisos, longamente desvalorizados ou ignorados por decisores políticos. Talvez um dos melhores exemplos num passado recente seja os atentados de 11 de Setembro de 2001 a Nova Iorque e Washington, que resultaram na morte de quase três mil pessoas, perante um mundo chocado e atónito com o que acabara de ver. Imprevisível, pensaram todos num primeiro momento, mas sabemos hoje que não foi bem assim. Além de haver já um histórico sobre a actividade da Al-Qaeda e de Osama bin Laden, que os serviços de intelligence americanos conheciam bem, também não foi por falta de informação ou indícios sobre o planeamento do atentado que não foram tomadas medidas preventivas. Dificuldade na comunicação entre agências federais de segurança, ausência de partilha de informação entre organismos governamentais, entropia burocrática, procedimentos e metodologias obsoletas, falhas de interpretação, desatenção e muita incompetência pelo meio, foram algumas das razões que tornaram o previsível em imprevisível.
Com as devidas distâncias, naturalmente, mas o mesmo aconteceu com a pandemia que agora vivemos. Aquilo que podia ter sido gerido com alguma preparação e grau de previsibilidade por parte dos governos mundiais, atenuando as suas consequências ou até mesmo evitando a sua propagação, acabou por apanhar todos de surpresa e ser um desastre de proporções aterradoras, criando a pior disrupção nas nossas sociedades desde a II Guerra Mundial. Uma ideia partilhada por Jennifer Nuzzo ao sublinhar que “o surgimento da covid-19 não devia ter sido uma surpresa” para os líderes. A especialista em saúde ligada à Johns Hopkins University reconhece que o novo coronavírus apanhou o mundo totalmente impreparado, mas lembra que não foi por falta de aviso dos especialistas, que há décadas fazem soar os alarmes.
A ideia de imprevisibilidade da pandemia serviu como argumento inicial para muitos governos justificarem a total ausência de preparação e planeamento que permitisse aos seus Estados enfrentarem uma situação para a qual vinham sendo alertados há anos por especialistas e comunidade científica. Tenho bem presente uma das edições de 2005 da conceituada Foreign Affairs dedicada exclusivamente à problemática da “next pandemic”. Estava lá tudo, uma espécie de guião elaborado por alguns dos maiores especialistas mundiais. Era mais um contributo que engrossava o manancial de informação credível e validada à disposição dos governos e decisores.
A pandemia da covid-19 veio apenas meter a descoberto, da forma mais brutal e mortal, as fragilidades estruturais, mesmo depois de o mundo ter passado por experiências recentes, nomeadamente com a pandemia H1N1 de Abril de 2009 a Agosto de 2010. Segundo um estudo da The Lancet divulgado dois anos depois, houve “apenas” 18.500 mortes verificadas laboratorialmente, mas como a própria revista sublinha, esse número era apenas uma pequena parte, já que o estimado a nível mundial é superior a 280 mil mortes associadas ao H1N1, sendo que 80% destas terá ocorrido em pessoas com menos de 65 anos.
E para quem se lembra, poucos anos antes, em 2003, tinha havido uma crise potencialmente muito perigosa de saúde pública, conhecida como a “gripe de aves” (H5N1), gerando muito receio, porque em 90% dos casos atacava a população mais jovem abaixo dos 40 anos, com uma taxa de letalidade assustadora, sabendo-se pouco sobre o vírus, apesar de ter surgido em 1997. Para se ter uma ideia, segundo um relatório do passado mês Dezembro da OMS, entre 2003 e 2020 foram registadas 455 mortes em 862 casos diagnosticados de H5N1. Não devemos esquecer também crises regionais como a da Ébola (2014-16) ou do Zika (2015-16).
Apesar das crises recentes dos últimos 20 anos, da imensa literatura científica disponível e dos inúmeros avisos dos especialistas, os governos pouco ou nada fizeram para antecipar a “next pandemic”. Em 2005, na ressaca da “gripe das aves”, o editorial da edição da Foreign Affairs acima citada alertava que os especialistas estavam alarmados pela “desadequação dos planos nacionais e internacionais” para lidarem com uma crise daquela dimensão. Nas páginas seguintes, Laurie Garrett, uma referência no jornalismo científico, avisava que “a humanidade poderá muito bem ter que enfrentar uma pandemia nunca antes vista”.
Tal a dimensão do choque traumático que hoje vivemos, que desta vez acredito que muita coisa mude em matéria de prevenção pandémica. Aconteceu o mesmo depois do 11 de Setembro nos EUA e no resto do mundo, através da alteração de mentalidades e da implementação de uma série de medidas preventivas – algumas delas introduzidas no nosso quotidiano – e planos de contingência, para se lidar com o fenómeno do terrorismo islâmico. No caso dos EUA, as reformas foram ainda mais profundas, com resultados evidentes: nunca mais sofreram qualquer atentado terrorista perpetrado por organizações islâmicas.
Os líderes foram descurando ao longo dos anos as políticas necessárias que permitiriam enfrentar com outro músculo uma (mais que previsível) pandemia global. E, pior que isso, os governantes ignoraram ou desvalorizaram alertas dados nas vésperas do início desta pandemia. Talvez o caso mais evidente seja o de Donald Trump. Em Maio de 2018 começou por desmantelar a task force de resposta pandémica da Casa Branca, deixando claro o seu desinteresse pelo tema. Mais tarde, com a primeira vaga a formar-se, foi desprezando toda a informação que lhe chegava. Sabe-se que em Janeiro de 2020 recebeu, pelo menos, dois briefings, nos quais era alertada a possibilidade de o vírus se espalhar globalmente. Também se sabe que o próprio Trump, na entrevista telefónica que realizou a 7 de Fevereiro com o jornalista Bob Woodward, já tinha um conhecimento substancial sobre o vírus. Mas o facto é que nenhuma dessa preciosa e vital informação foi usada para a Administração americana agilizar respostas federais ou para ajudar a comunidade internacional na antecipação do que viria a acontecer. Quando a primeira “onda” rebenta, tudo passou a ser reactivo. Cada Governo por si, com alguns países a viverem uma primeira vaga terrível, sem capacidade de resposta, reflectindo-se numa sobrecarga dos respectivos sistemas de saúde e, consequentemente, em mortes. Os pilares económico e social começavam a colapsar.
Apesar dos erros históricos, tudo se desculpou aos governos num primeiro momento. Não havia outra maneira. O mal estava feito. Era tarde de mais. Não havia um manual de gestão de crise ao qual se pudesse recorrer. E aquilo que podia ter sido gerido com alguma previsibilidade tornou-se num turbilhão de imprevisibilidades. Resiliência passou a ser a palavra de ordem que, convenientemente, justificava a impotência dos governos e, ao mesmo tempo, enaltecia o esforço hercúleo que começava a ser demonstrado por vários sectores da sociedade que eram atirados para a “linha da frente”, ora para prestar cuidados médicos aos seus concidadãos, ora para alimentá-los ou provi-los das suas necessidades mais básicas. Vários países tombaram de imediato à primeira vaga. Portugal passou praticamente incólume. Por “milagre”, dizem os crentes.
Com os países a caminharem para o abismo, era o momento de os líderes se chegarem à frente e… liderarem. Os livros de História estão repletos de heróis que despontam nas horas mais negras para conduzir os desígnios do povo entre as agruras da tragédia. Mas, do que se tem visto, os grandes heróis têm sido aqueles que, desde o primeiro momento, estiveram no terreno a deixar o seu sangue, suor e lágrimas.
Quase um ano depois de “guerra” e muita mortandade, esses mesmos heróis transfiguraram-se em semi-deuses, tal o esforço diário quase sobre-humano que impõem no seu trabalho para garantir um nível mínimo de humanidade aos doentes e de conforto e estabilidade à polis. Não querendo ser injusto, reconheço que nos corredores da Política – a tal arte que, entre outras coisas, e como diria o Professor Adriano Moreira, tem de saber lidar com a incerteza dos tempos – houve quem tivesse demonstrado alguma habilidade e capacidade de liderança. Governos e países que, com disciplina e talento, conseguiram antecipar problemas e aprender com os seus erros e dos outros. Talvez não tenham sido inspiradores na sua liderança, mas cumpriram capazmente com as suas funções.
A maioria dos países ocidentais continua numa situação muito difícil e Portugal, em particular, mergulhou numa agonia desesperante. Uma situação que não era de todo imprevisível. Talvez o fosse em Março (e, mesmo assim, os exemplos históricos diziam-nos que as vagas seguintes tendiam sempre a ser piores), mas nunca no passado mês de Dezembro. Seria assim tão difícil em meados de Dezembro antecipar o que iria acontecer umas semanas depois? Seria assim tão difícil ver os vários modelos de previsões? Mesmo deixando de lado os números das estatísticas e das probabilidades, seria assim tão difícil imaginar, com ou sem estirpe inglesa, um cenário pessimista para daí um mês? Não era um ano de antecipação que se exigia aos líderes, mas apenas um mês.
A propósito deste exercício de gestão da pandemia, J. Peter Scoblic e Philip E. Tetlock escreviam, na passada edição de Novembro/Dezembro da Foreign Affairs, que os cenários servem para ser “provocatórios”, para colocar em causa os modelos de pensamento instituídos e dotá-los de uma maior flexibilidade cognitiva, para se adaptarem melhor às incertezas do mundo futuro. A tudo isto acresce ainda a capacidade analítica, por parte dos decisores e staff técnico, para observar os sinais externos e interpretar a informação que vai chegando de diferentes fontes. Um exercício fundamental para robustecer uma boa decisão política.
A 14 de Dezembro escrevia o seguinte na minha conta de Twitter: “É apenas uma percepção e nada mais, mas ouvindo o tom pesado de alguns líderes europeus e as medidas rígidas que estão a adoptar, diria que, ou a situação pandémica em Portugal está, efectivamente, melhor que nesses países, ou então há algo de muito errado. Como disse, percepção.” Infelizmente, bastaram umas semanas para confirmar a minha percepção e comprovar que algo tinha estado muito errado na óptica do processo de decisão política para “salvar o Natal”. Um processo que, diga-se, parece ter merecido um amplo consenso político e social (o que não desobrigaria os líderes máximos de decidirem sabiamente, antecipando os piores cenários).
Não faço aqui esta referência num tom crítico ou recriminatório a quem neste momento tem a espinhosa missão de liderar e gerir. Pelo contrário. Faço-o como um modesto contributo construtivo para se melhorar os tais modelos de previsão e de antecipação para o futuro incerto que ainda vamos ter pela frente. Não podemos é, quase um ano depois, ficar com a sensação de que se continua a perpetuar os mesmos males, com consequências cada vez mais gravosas. Ninguém coloca em causa o espírito de entrega e a boa vontade daqueles que mais directamente estão envolvidos na gestão estratégica desta pandemia, mas às vezes fica-se com a impressão de que, ao nível das estruturas de decisão e planeamento, se continua a confundir voluntarismo com profissionalismo. Ambos são conceitos muitos importantes e necessários em tempos de crise, mas contemplam inúmeras diferenças.
O tempo é de união solidária entre os diversos sectores da sociedade e de soluções assertivas para combater a pandemia em várias frentes. Mas isso só será possível se todos, como comunidade, tivermos a capacidade e a humildade de ir reconhecendo e aprendendo com os erros. Na liderança da gestão de uma crise desta dimensão histórica e humana exigem-se os melhores dos melhores, mas o esforço terá de ser sempre conjunto, enquanto Nação. Se cada um fizer o que lhe compete, seguramente se salvarão vidas. E isso nada terá de imprevisível.