Pobreza, violência e doença mental. Está a delinear-se um plano para resgatar crianças das consequências da pandemia
As “crianças são as menos infectadas, mas as mais afectadas pela pandemia”, diz presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, Rosário Farmhouse.
O plano de acção 2021/2022 da Estratégia Nacional para os Direitos da Criança ainda não passa de um esboço, mas já é certo que procurará responder aos problemas agravados pela pandemia de covid-19: pobreza infantil, violência intrafamiliar e doença mental, incluindo dependência de ecrã.
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O plano de acção 2021/2022 da Estratégia Nacional para os Direitos da Criança ainda não passa de um esboço, mas já é certo que procurará responder aos problemas agravados pela pandemia de covid-19: pobreza infantil, violência intrafamiliar e doença mental, incluindo dependência de ecrã.
A presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, Rosário Farmhouse, descreve a primeira Estratégia Nacional para os Direitos da Criança, que abrange o período 2021-2024, como “um documento transversal e orientador”. “Está bastante articulado com a estratégia dos direitos da criança do Conselho da Europa”, salienta.
Já tem um esquisso do primeiro plano de acção, mas escusa-se a avançar pormenores. Afinal, ainda está a formar-se a comissão técnica de acompanhamento e monitorização que deverá ajudá-la a acabar de delineá-lo. Mal esteja formada, Farmhouse apresentar-lhe-á o que tem e esta “poderá dar os seus contributos”. Só lá para o final de Março deverá apresentar o documento final à tutela.
“Há uma reorientação para que a estratégia responda aos enormes desafios trazidos pela pandemia”, adianta Farmhouse. Os problemas estão identificados: “houve um aumento da pobreza e da desigualdade, da doença mental e da violência”. “Queríamos muito que o plano de acção 21/22 ajudasse a concretizar alguns direitos e a proteger as crianças. São as menos infectadas, mas as mais afectadas pela pandemia.”
Dependências e ecrã e predadores sexuais
A estratégia traz uma promessa de qualificação das respostas de saúde mental. Prevê-se o alargamento da “cobertura dos serviços de psiquiatria de infância e adolescência”, visando amplitude nacional.
“Há uma preocupação muito grande de encontrar soluções de acompanhamento”, concede Farmhouse. Conhece casos de “crianças que até aqui tinham tido um percurso muito sereno e que, de repente, com a pandemia, a informação e às vezes a desinformação, ficaram com fobia de ir à rua, de estar com os outros”. Elenca “ansiedade, germofobia, problemas de sociabilidade”.
Com o país fechado em casa, inquieta-se com o alastrar das dependências de ecrã. “Há crianças com dependências profundas.” Passam horas agarradas ao televisor, ao tablet, ao computador, ao telemóvel. “Se estão longe de um ecrã, têm síndrome de abstinência. Ficam ansiosas, agressivas.”
A exposição aos ecrãs com acesso a Internet também torna crianças e jovens mais vulneráveis aos predadores sexuais. À Polícia Judiciária têm chegado quantidades inusitadas de imagens referentes a abuso sexual, muitas vezes produzidas pelas próprias vítimas de forma inadvertida.
A esse respeito, a estratégia prevê um incremento dos níveis de segurança no acesso aos meios digitais. “A questão da educação e da sensibilização para a cidadania digital é muito importante”, torna Farmhouse. “Nós temos estado em articulação com outras entidades para sensibilizar as crianças para os perigos. Tentaremos agora chegar mais profundamente ao problema.”
A violência familiar e o sistema de protecção
A experiência mostra que o confinamento aumenta também a violência intrafamiliar. O convívio forçado de vítimas e potenciais agressores pode associar-se ao stress provocado pelo teletrabalho ou pela perda ou a suspensão do trabalho. Como falta o olhar atento da escola, do centro de actividades ou de outras estruturas de infância e juventude, cresce o risco de casos de negligência, maus tratos ou abuso sexual passarem despercebidos.
“Temos uma campanha a decorrer nos meios de comunicação social e nas nossas ferramentas digitais”, salienta aquela responsável. “Proteger crianças compete a todos.” Essa é a mensagem que procura passar. “Todos temos de estar atentos. Cada um de nós tem o dever de comunicar situações de perigo.”
Sabe que a violência e o abuso sexual “deixam marcar que, se não forem tratadas, ficam para o resto da vida”. Saúda, por isso, o protocolo assinado pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e pela Ordem dos Psicólogos para garantir apoio psicológico às crianças vítimas de violência doméstica. “Muitas vezes, estas crianças ficam invisíveis.” Ficam sem uma resposta específica numa rede que se concentra nas vítimas adultas.
O sistema de protecção também tem de se transformar. A estratégia prevê a qualificação das casas de acolhimento, que acolhem 97% das crianças e jovens retirados às famílias, e o reforço das famílias de acolhimento, que ficam com os outros 3%. Farmhouse e o resto da equipa terão de encontrar um caminho para que “esses números venham a mudar”. Não tem qualquer dúvida sobre a necessidade de seleccionar e preparar famílias de acolhimento para cuidar, em particular, das crianças com menos de seis anos. Não está tão certa sobre o caminho a seguir nas casas de acolhimento pelo que a especialização pode significar em matéria de exclusão. Um grupo está a estudar esse assunto.
“A ideia é que seja um plano concretizável, que dê resposta aos problemas, que consiga fazer o que às vezes já está desenhado há muito tempo e que não conseguimos pôr em prática”, remata. “É uma oportunidade de concretizar medidas que farão a diferença (para bem) na vida das crianças e jovens.”