Perfil dos doentes em cuidados intensivos muda. Há menos idosos e mais jovens

A percentagem de doentes a partir dos 80 anos internados em unidades de cuidados intensivos passou de 8,3% em Novembro passado para 2,3% no final de Janeiro. É preciso estudar estes dados, defendem os especialistas.

Foto
Miguel Manso

O perfil dos doentes em estado crítico internados em unidades de cuidados intensivos (UCI) está a mudar. Aumentaram os internamentos de doentes mais jovens e há menos pacientes em idades mais avançadas em tratamento nestas unidades de elevada complexidade e sofisticação. Os doentes com 80 ou mais anos representam agora apenas 2,3% do total. É um fenómeno que precisa de ser estudado, defendem os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, que acreditam que haverá vários factores que podem estar na base desta alteração de perfil.

Os dados da Direcção-Geral da Saúde (DGS) são inequívocos: se, em 30 de Novembro passado, a percentagem de doentes em UCI com 80 ou mais anos ascendia a 8,3%, no passado domingo, 31 de Janeiro, essa proporção era de 2,3%, apesar de, considerando todos os internamentos em enfermaria, os mais idosos representarem o grupo mais volumoso.

Em sentido contrário, a percentagem de pacientes em idades mais jovens está a aumentar em todas as faixas etárias, a partir dos 30 até aos 79 anos. Entre os 30 e os 39 anos estavam internados em cuidados intensivos, no passado domingo, 24 doentes, ou seja, 2,77% do total; entre os 40 e os 49, eram 79 (9,1%); cerca de um quinto, eram pessoas entre os 50 e os 59 anos, um terço eram doentes entre os 60 e os 69 anos, e 27,6%, entre os 70 e os 79 anos. São percentagens superiores às que se observavam em 30 de Novembro passado para todas estas faixas etárias.

Aumentar

O que está a acontecer? Pode haver várias explicações, pondera João Ferreira Ribeiro, director do serviço de Medicina Intensiva do Hospital de Santa Maria (Lisboa). Numa “abordagem científica”, o especialista encontra, à partida, duas explicações para este fenómeno que, de “forma concomitante”, admite serem “mais plausíveis”: “Com a densificação da pandemia e o número crescente de novos casos e de casos activos nas diversas faixas etárias, a taxa de incidência em idades mais jovens, como entre os 40 e os 50 anos e os 50 e 60 anos, aumentou muito.” E prossegue: “São doentes que estão a procurar os cuidados de saúde e preenchem os critérios [de admissão em cuidados intensivos]”. São, aliás, doentes que traduzem uma realidade que “alguns discursos tendem a desvalorizar”, frisa: a de que a covid-19 também pode ser grave em idades mais jovens.

Actualmente, “há muito mais doentes em faixas etárias mais novas”, enfatiza João Ribeiro. E repete: transmitir a ideia de que em determinadas faixas etárias o risco não existe conduz a comportamentos arriscados.

Ruptura do sistema?

Outra explicação possível para estes números, “no domínio das hipóteses que terá que ser provada”, é a de que eles podem reflectir “uma ruptura do sistema [de saúde] e uma limitação da capacidade de acesso” ao mesmo.

O médico assegura, porém, que a idade não é o critério de referenciação. “O critério é fisiológico e este critério é muito menos adequado à medida que a idade aumenta. É da biologia”, observa. A admissão em UCI, frisa, depende de “uma ética contingencial que está fundada na apreciação fisiológica de cada doente”. “E a predisposição fisiológica para doença grave aumenta com a idade. Somos mais frágeis aos 80 anos do que aos 40 anos, na maior parte dos casos.”

Aumentar

Seja como for, garante, não estamos numa situação de catástrofe. Mas estamos num cenário de ruptura? O médico responde com uma pergunta: “Se o Governo está a pedir ajuda internacional, então não estamos em ruptura”?

É preciso “desmistificar a ideia” de que os casos graves de covid-19 só ocorrem em pessoas idosas ou frágeis, destaca também, em entrevista ao PÚBLICO, o presidente do colégio da especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, José Artur Paiva. “Temos 30% dos internamentos em pessoas com menos de 60 anos e cerca de 12% em pessoas com menos de 50 anos e parte destes grupos não têm patologia significativa.”

Sobre a acentuada diminuição da percentagem de doentes a partir dos 80 anos nos cuidados intensivos, entre o final de Novembro passado e o final de Janeiro, José Artur Paiva defende que estes dados têm que ser “avaliados e analisados” e que podem ter “diversos significados”. “Estas novas variantes têm incidência maior nos mais jovens, isso dá um shifting [deslocação] para aquele lado, outra coisa pode ser, eventualmente, a redução do acesso” aos cuidados de saúde.

O director do serviço de Medicina Intensiva do Hospital de São João (Porto) frisa igualmente que “a idade não é um critério” para internar em UCI. Explica que para a decisão de internar um doente nos cuidados intensivos se leva em conta a doença aguda, a sua gravidade, prognóstico e o grau de reversibilidade, além das outras doenças e o estado funcional da pessoa.

“Isto não tem a ver com a idade. Há pessoas que têm 80 anos e que têm uma capacidade muito grande de recuperar”. Mas não há uma relação com a idade? “Claro que é mais provável uma pessoa estar mais fraca aos 80 anos do que aos 20. Mas a idade não é critério. Temos doentes no nosso serviço desde os 18 aos 100 anos. E a ética não muda com a pandemia.”

Pressão nas UCI

Sem conhecer os dados da DGS, o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, João Gouveia, sublinha apenas que, globalmente, os doentes que nos últimos tempos estão a chegar às UCI “são mais novos e mais graves”.

Frisando que a idade, por si só, não é critério — “isto não é uma folha de Excel" —, o médico intensivista Gustavo Carona não deixa de observar que as pessoas em idades mais avançadas “dificilmente têm potencial de reversibilidade” e admite que, à medida que a pressão nos cuidados intensivos aumenta, o crivo passa a ser maior. 

Sem querer pronunciar-se sobre estes dados da DGS, o presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos, Manuel Mendes da Silva, também destaca que a idade por si só não é um critério, apesar de poder ser levada em consideração na avaliação que é feita em conjunto com outros factores.

Em Novembro, este conselho da Ordem dos Médicos emitiu um parecer em que recomenda que, num cenário de catástrofe, os cuidados intensivos devem ser reservados para os doentes que têm “maior probabilidade de sobrevivência” e com qualidade de vida após o tratamento.