Um pouco de ternura fica sempre nas mãos de quem tem filhos

A mãe dela, ao contrário da minha, era sempre muito carinhosa a compor a bandolete à Lúcia antes dela sair de casa, e disse-me uma vez: “Um pouco de ternura fica sempre nas mãos de quem tem filhos.” Não entendi, mas ficou registado.

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Catt Liu/Unsplash

Depois de dar lições pelo computador — estranha sala de aulas, a que ainda não me habituei —, de deitar a menina na cama, que ficou mais de duas horas a jogar sabe Deus a quê, no seu aparelho amarelo que me custou mais de 200 euros e que faz as vezes de uma babysitter para eu poder trabalhar à noite, ainda fui lavar a loiça do jantar.

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Depois de dar lições pelo computador — estranha sala de aulas, a que ainda não me habituei —, de deitar a menina na cama, que ficou mais de duas horas a jogar sabe Deus a quê, no seu aparelho amarelo que me custou mais de 200 euros e que faz as vezes de uma babysitter para eu poder trabalhar à noite, ainda fui lavar a loiça do jantar.

A máquina é pequena e não chega para a tralha toda, sobram sempre os tachos e as frigideiras, quando as há, que é preciso esfregar à mão. A casa fica silenciosa e só se ouvem a máquina da loiça a bater copos e pratos, e o esfregão a raspar as caçarolas engorduradas. Penso na casa dos meus pais, no lavatório em inox sempre atulhado de loiça suja. Ao contrário de mim, a minha mãe nunca teve pressa em ir arrumar a cozinha. Deitávamo-nos com a cozinha por limpar, e ao pequeno-almoço as bancadas ostentavam amiúde os tachos sujos com restos de comida da noite anterior.

No início da adolescência, tinha uma amiga, a Lúcia, que acordava sempre mais cedo do que eu e vinha buscar-me a casa. Tocava à campainha e eu era obrigada a deixá-la entrar. Entrava em minha casa, muitas vezes ainda nem eram oito da manhã, e ficava sentada à mesa da cozinha a ver-me comer o Chocapic com leite, com a mesa ainda posta do jantar. Eu tinha vergonha da minha casa sempre desarrumada e suja, e sobretudo da Lúcia, cuja mãe era o cúmulo da ordem e cuja casa estava sempre arrumadíssima e a cheirar a detergente. A mãe dela, ao contrário da minha, era sempre muito carinhosa a compor a bandolete à Lúcia antes dela sair de casa, e disse-me uma vez: “Um pouco de ternura fica sempre nas mãos de quem tem filhos.” Não entendi, mas ficou registado.

Comecei a levantar a mesa todas as noites com as minhas próprias mãos, não queria passar por aquela humilhação diária de ter de comer rodeada de restos do jantar, cujos cheiros misturados com os cereais e o leite me agoniavam antes de ir para a escola, e com a assistência recriminadora, embora disfarçada, da Lúcia. Vim a saber mais tarde que a mãe da Lúcia não era perfeita como eu tantas vezes pensara; também tinha imperfeições e talvez piores do que a minha.

A mãe da Lúcia desapareceu um dia, sem avisar ninguém, deixando as duas filhas, a Lúcia e a irmã dois anos mais velha, num estado de tristeza e preocupação inenarráveis, entregues a um pai, que eu em vários anos de amizade nunca vira. No dia em que a mãe da Lúcia desapareceu, ficámos as duas sentadas nas escadas do prédio, entre o terceiro e o quarto andar. Encostada ao meu ombro, a Lúcia chorava em silêncio, e eu nada dizia, tinha apenas de me levantar de vez em quando, tactear as paredes ásperas de tinta de areia até chegar ao botão da luz do prédio e voltar a iluminar as escadas onde a Lúcia se escondia do mundo, cheia de medo por lhe ter desaparecido a mãe. A família apresentou queixa à polícia e, passadas umas semanas, descobriram onde a mãe se encontrava. Para espanto de todos, para mim foi um choque, nem imagino para as próprias filhas, a mãe tinha fugido com um feirante.

No nosso bairro, às terças e quintas havia uma feira onde se vendiam roupas, bugigangas e toda a espécie de quinquilharias. Ao que parece, a mãe da Lúcia conhecera um desses feirantes, apaixonara-se e largara a família. Era, de facto, chocante que uma senhora tão bem arranjada, uma mãe extremosa, cuidadora do lar e da família, tivesse feito uma coisa daquelas. Fugir com um feirante para outra cidade, abandonando o marido e, o mais impressionante, as duas filhas. A Lúcia, que era uma rapariga alegre e até um pouco leviana na forma como se relacionava com os rapazes, mudou bastante depois deste acontecimento. Conheceu um rapaz, substancialmente abaixo das suas capacidades intelectuais, e comprometeu-se a sério, deixando de parte as amigas. Talvez precisasse de protecção masculina, talvez repetisse de forma diferente o modelo da progenitora e fosse incapaz, tal como a mãe, de manter várias pessoas no círculo íntimo quando se apaixonava.

Terminado o liceu, nunca mais vimos a Lúcia. Sabemos que trabalha numa fábrica, foi mãe e continua com o mesmo rapaz. Parece feliz nas fotografias nas redes sociais. Terminei de lavar a loiça, com as mãos ásperas e demasiado cansada para me pôr a ler. Era esse o meu desejo antes de me ter posto a arrumar a cozinha. Vou apenas esticar-me no sofá e dar-me por satisfeita por ter mãos com ternura, como diria a mãe da Lúcia, para cuidar da casa e aconchegar a menina que descansa na cama.