Tempo de inquietação e… tempo de lágrimas
Com profunda tristeza, junto a minha voz aos que têm afirmado sem receios que esta tormenta, este tempo de lágrimas, não aconteceu por acaso, nem de sopetão. Era previsível, se a dinâmica prospectiva que é apanágio da Medicina, da Ciência e do Bom Governo tivesse prevalecido sobre a inércia, a ignorância e o conformismo.
31 de Janeiro 2021: Data importante no ideário republicano, infelizmente relegada para o baú da memória, pandemia oblige. 300 fatalidades em média por dia e o primeiro lugar no pódio da desgraça dos países cujos registos são conhecidos e fiáveis, são motivo de profunda inquietação e para muitos concidadãos, infelizmente, de grande amargura.
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31 de Janeiro 2021: Data importante no ideário republicano, infelizmente relegada para o baú da memória, pandemia oblige. 300 fatalidades em média por dia e o primeiro lugar no pódio da desgraça dos países cujos registos são conhecidos e fiáveis, são motivo de profunda inquietação e para muitos concidadãos, infelizmente, de grande amargura.
O Presidente reeleito invocou essa dura realidade logo no início do seu discurso, convocando os portugueses para um combate duro e para uma responsabilidade pessoal e institucional indeclináveis. Num excelente artigo, António Barreto [1] interrogava-se com lucidez e amargura – saberemos um dia porquê? Porque falhámos tão flagrantemente neste Outono/Inverno do nosso maior descontentamento? Seremos suficientemente exigentes para com frieza e objectividade analisar a realidade, formular uma opinião e agir em conformidade? Procurei, com as minhas limitações, usar estes artigos para, compreendendo a realidade, não me eximir ao exercício do elogio ou da crítica, confiante em que isso não me tornaria mais um criminoso do pensamento aos olhos de quem tem o dever inadiável de Bem Fazer e respeitar a Democracia e a Liberdade, no pensamento e na acção. Invoquei, nesta tribuna que o PÚBLICO me tem proporcionado, Bertrand Russel, entre outras figuras do Pensamento, cientista, matemático e filósofo, autor duma História da Filosofia Ocidental que influenciou gerações. Give me the facts, recomendava na sua última entrevista [2], consubstanciando um apelo à procura da Verdade, recusando a instrumentalização ao serviço de qualquer narrativa circunstancial. Na fidelidade a esse apelo, e com profunda tristeza, junto a minha voz aos que têm afirmado sem receios que esta tormenta, este tempo de lágrimas, não aconteceu por acaso, nem de sopetão. Era previsível, se a dinâmica prospectiva que é apanágio da Medicina, da Ciência e do Bom Governo tivesse prevalecido sobre a inércia, a ignorância e o conformismo, que nos levou desde há meses a agir correndo atrás do prejuízo, sem antecipação à realidade previsível. Omissões, decisões erradas, complacência/displicência substituíram-se à objectividade e ao rigor da análise dos factos.
Há meses, perante o descalabro inicial da situação no Reino Unido e a confusão reinante, um distinto neurocirurgião britânico, Henry Marsh, recentemente jubilado do NHS, escreveu em editorial no Financial Times que cito: It is always easy to be wise in retrospect, but the unpreparedness of the NHS, in terms of PPE (personal protective equipment), proper hygiene rules, especially in hospitals, and virus testing kits will need to be thoroughly investigated at a later date. There will be a demand for people to be held to account, but for now the government must concentrate on playing a game of catch-up [3]. Aplica-se, ipsis verbis, a Portugal, como nos recordam artigos recentes [4,5] relembrando como a Direcção-Geral da Saúde invocara a fraquíssima possibilidade de o vírus se transmitir duma pessoa à outra, desaconselhara o uso de máscaras cirúrgicas, fonte de falsa segurança (e nessa época na China, Coreia e Europa se recomendava fortemente o seu uso), como não se organizou a resposta necessária e essencial para conter a doença, desde a generalização maciça dos testes de diagnóstico – e o que teria acontecido sem o esforço e a colaboração do execrado sector privado? –, os rastreamentos epidemiológicos comprometidos pela incapacidade de organizar equipas adequadas. Li que haveria cerca de 800 rastreadores para uma necessidade de cerca de 10.000 para o sistema ser eficaz (!) e também a tentativa de branquear a insuficiência dos transportes públicos, ignorando as imagens sucessivas, mesmo agora, das carruagens a abarrotarem de gente.
Recordo apenas de num destes meus escritos em plena crise na região de Lisboa me ter dirigido ao então nomeado coordenador de Saúde para a região, relembrando a necessidade de mobilização dos estudantes de Medicina para os rastreios, aparentemente sem resultado. Ignoraram que Ricardo Jorge, no combate à Peste Bubónica no Porto no fim do século XIX, mobilizara os finalistas de Medicina! E mais recentemente, voltando ao tema, sugeri o recurso aos alunos de enfermagem – a Ordem dos Enfermeiros fizera essa proposta – e também estudantes de Sociologia, que certamente poderiam aproveitar para fazer alguma investigação sobre condições socioeconómicas na população mais vulnerável. Não sei se aconteceu alguma coisa. Mas creio que não, ao ouvir na RTP1 o presidente do CNECV mencionar essa possibilidade. Parece que os decisores vivem uma bolha autista, onde só penetram os compagnons de route e os próximos ideologicamente.
Para não falar da irresponsabilidade política que foi o alívio de sanções na época natalícia, o desastre anunciado e escrito nas estrelas! A variante britânica foi reconhecida pelos ingleses logo em Novembro, surpreendidos pelo súbito disparo de novos casos no condado de Kent, o qual se atravessa para chegar a Dover. Em meados de Dezembro, vários países fecharam os corredores aéreos para o Reino Unido e/ou impuseram várias restrições, também para os camionistas — alguns portugueses, como se viu na televisão — que na semana anterior ao Natal se acumularam nas estradas do condado de Kent, apoiados pela população local, o caldo de cultura ideal para a contaminação pela mutação viral e a sua disseminação pela Europa. Como é que o Governo não sabia? E a Direcção-Geral da Saúde, não avisou os decisores políticos, como compete a um órgão técnico transformado, infelizmente, em palco de intervenção de responsáveis políticos? E a comunidade científica que se reúne no auditório do Infarmed, aceitou esperar até à segunda semana de Janeiro para informar os políticos? Eu sei que houve quem individualmente tivesse feito chegar as suas preocupações e avisos...
Há um debate em curso sobre a dimensão ética e a responsabilidade da cidadania na forma como as sociedades ocidentais, portuguesa incluída, têm respondido aos desafios da pandemia. As imagens das manifestações de protesto na Holanda, França e ao que parece na Hungria evidenciam um problema real que abordei no último artigo [6], em contraponto à aceitação e cumprimento das restrições que se verifica no Oriente. E agora com as profissões da Saúde, médicos e enfermeiros no centro do furacão, os hospitais e o SNS verdadeiramente no fio da navalha e os doentes em filas de espera nas ambulâncias, um problema que necessitou de dois dias de inferno na entrada do meu Hospital de Santa Maria para ser resolvido. Porque não se pensou antes, é que me deixa perplexo. Os profissionais e capacidade institucional já sobejamente demonstrada mereceriam outra consideração.
Tudo isto pôs em evidência uma outra realidade: a importância e a exigência da Comunicação em Medicina, com os doentes e familiares e com a Sociedade. Foi um assunto ao qual a faculdade que dirigi se interessou bastante. É complexo, impõe exercício de verdade pela informação honesta, isenta e verificável, impõe o dever do exemplo, de humanidade e empatia, no diálogo com os doentes e familiares, a obrigação de contenção e discrição particularmente na situação extrema como a actual, porventura para muitos um terreno desconhecido. Mas agir e comunicar sob stress e enorme pressão aprende-se e treina-se, há estruturas próprias – Centros de Simulação Avançada – onde as equipas clínicas, médicos, enfermeiros e outros, são imersos numa realidade simulada e aprendem, praticando, sob supervisão, a decisão certa, a sua justificação e como a comunicar. Reconheço que a esmagadora maioria dos médicos e enfermeiros têm actuado de modo louvável e com sobriedade, os protagonismos individuais são inevitáveis, e compete às instituições proactividade e aos meios de comunicação isenção na sua divulgação.
Admirei as declarações serenas e firmes da directora do serviço de Urgência de Santa Maria que, preservando recato e contenção, não escamoteou o sobressalto ético que é a dificuldade de adequar recursos a uma dimensão insuspeitada de necessidades e preservando a exposição do sofrimento individual que todo o médico deve saber ultrapassar e processar no silêncio da sua consciência e no respeito pela Ética. Como foi reconfortante depoimento humano, cheio de força, sentido do dever e de esperança da jovem médica do Porto que as televisões passaram. Grace under pressure que o Presidente Kennedy considerava como a virtude da coragem em acção. Não ultrapassar essa fronteira ética requer fortaleza de espírito e racionalidade inquebrantável – fortitude, na língua inglesa –, é um valor supremo que a sociedade exige do médico, particularmente quando outros interesses legítimos que sem dúvida poderão coexistir, mas que é importante que não prevaleçam.
O que escrevi não sugere, de modo algum, silêncio cúmplice com uma narrativa que não salvaguarde interesses fundamentais. A história da medicina portuguesa está cheia de exemplos, no passado e no presente, em que os médicos exerceram o dever de denúncia de decisões, de realidades e orientações que desafiavam a dimensão fundamental da Ética médica e da competência – o dever de responsabilidade para com os doentes [7]. Há princípios e regras, nem tudo serve e há limites que, sendo transpostos, não servem nem a mensagem nem o mensageiro!
O tempo da responsabilidade pelas más decisões, pelas políticas falhadas e pelas omissões incompreensíveis chegará, porque esse é um dever da Cidadania responsável. E prolongá-lo não servirá nenhum propósito se não a persistência do erro! E relembro Einstein: we cannot solve our problems with the same thinking we used when we created them.
O que felizmente este tempo tão difícil ilustra é que a responsabilidade de nos colocarem no pódio do desastre sanitário não pertenceu aos sectores profissionais, médicos, enfermeiros e outros, que no SNS e nas instituições privadas e sociais têm cumprido para além do dever, mas sim à política que na João Crisóstomo esqueceu ser o Ministério da Saúde do Governo de Portugal e tem actuado como gestor ideológico do Serviço Nacional de Saúde, deixando-o isolado num combate que era colectivo, para o qual se deveria ter mobilizado todos os recursos desde o seu início.
E outro tema, infelizmente ocupando ribalta mediática, refere-se ao programa de vacinação. Em artigos recentes escrevi que o mote deveria ser vacinar o máximo número de pessoas, no mínimo tempo possível [7,8]. Hoje, o conselheiro da Casa Branca, Prof. Fauci, e um académico da Johns Hopkins, director do Departamento de Saúde Pública, reafirmaram na CNN a absoluta necessidade de vacinação maciça como única estratégia adequada a reduzir o risco de novas mutações mais agressivas do vírus e possibilitar o controle da pandemia. Percebem-se as nossas limitações e constrangimentos potenciais, mas parece-me que não dissociar a vacinação do tratamento dos doentes, sobretudo não-covid, conhecendo as limitações dos Centros de Saúde, a dificuldade em manter distanciamento e o atraso enorme que se agravou no seguimento dos doentes habituais, será um erro. Sugeri que se mobilizassem os recursos dos alunos de Medicina e Enfermagem, a profissionais já retirados que, sob a orientação da Saúde Pública, poderão ajudar, e se recorressem a outros espaços amplos que rapidamente poderiam ser preparados, com tempo e não em cima da necessidade. As batotas que aconteceram não são um bom augúrio, mas é o jeitinho português, e que fazer? Só a força e exigência dum programa bem delineado, a firmeza no propósito e a clareza na comunicação o poderão minimizar, impondo disciplina e cumprimento das normas. Não adianta rotular politicamente os que manifestaram indignação: acho que gente séria e digna se encontra em todos os partidos e correntes de opinião.
A sociedade portuguesa enfrenta o seu maior desafio de décadas. Sem experiência de conflito armado no seu território – as guerras no século XX, com graves e dolorosas cicatrizes, foram longe e, não obstante, a vida continuava habitualmente com a excepção dos presos políticos e suas famílias e dos que emigravam à procura de melhor vida.
Tempos muito difíceis estes, de sacrifício, privações que a sociedade parece querer ignorar num negacionismo comportamental e ético. Tempo de inquietação e de lágrimas contidas que iremos superar sem dúvida, sem abdicar da nossa liberdade no exercício duma cidadania exigente, participativa e exemplar.
Referências:
[1] António Barreto: Corrigir erros, conhecer diferenças, PÚBLICO, 30/1/2021
[2] Bertrand Russel: Última Entrevista à BBC, YouTube
[3] Surgeon Henry Marsh: Covid-19 and the doctor’s dilemma, FT, March 27th, 2020
[4] Calado, Jorge: A arte como terapia do medo, Expresso, 29/1/2021
[5] Fernandes e Fernandes, José: Do Bom e do Mau Governo, PÚBLICO, 3/10/2020
[6] Fernandes e Fernandes, José: O meu País tão estranho..., PÚBLICO, 18/1/2021
[7] Fernandes e Fernandes, José: Dever de Responsabilidade e Obrigação Ética?, PÚBLICO, 13/1/2021
[8] Fernandes e Fernandes, José: Uma viragem definitiva. Tempo de esperança?, PÚBLICO, 29/12/2020