Três mulheres levam histórias no feminino ao Festival de Cinema de Roterdão
A competição da edição online do festival holandês arranca sob o signo do feminino: três filmes de mulheres sobre o passado, o presente e o futuro de ser mulher por entre ambientes que ainda as limitam.
Assistir a um festival de cinema faz-se sempre de percursos e de escolhas por entre aquilo que a programação nos propõe – acompanhá-lo online não é diferente, a não ser na diferença de disponibilidade para traçar caminhos e ligações e no modo como essa exploração vai sendo feita. Um dos percursos mais estimulantes de Roterdão 2021 é o signo do feminino, com uma grande quantidade de filmes assinados por mulheres, sem ser para isso necessário invocar uma qualquer hashtag activista ou uma quota de paridade de género a cumprir. Um bom exemplo no primeiro dia de exibições a concurso: três mulheres realizadoras a trazerem histórias no feminino, feitas com equipas quase exclusivamente femininas, ancoradas em realidades que conhecem e que vivem diariamente.
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Assistir a um festival de cinema faz-se sempre de percursos e de escolhas por entre aquilo que a programação nos propõe – acompanhá-lo online não é diferente, a não ser na diferença de disponibilidade para traçar caminhos e ligações e no modo como essa exploração vai sendo feita. Um dos percursos mais estimulantes de Roterdão 2021 é o signo do feminino, com uma grande quantidade de filmes assinados por mulheres, sem ser para isso necessário invocar uma qualquer hashtag activista ou uma quota de paridade de género a cumprir. Um bom exemplo no primeiro dia de exibições a concurso: três mulheres realizadoras a trazerem histórias no feminino, feitas com equipas quase exclusivamente femininas, ancoradas em realidades que conhecem e que vivem diariamente.
Fale-se primeiro da costarriquenha Paz Fábrega e da sua terceira longa Aurora (Big Screen Competition), história de uma gravidez adolescente num país onde o aborto é ilegal, mas também de um encontro improvável entre uma mulher sem filhos (Luisa, arquitecta responsável por um atelier de tempos livres) e uma filha que não esperava ser mãe (Yuliana, estudante que dá por si grávida aos 17 anos). Aurora é um filme em lume brando, composto de gestos e fragmentos de vidas que se tocam em momentos elegantemente coreografados, com algo da atenção de Lucrecia Martel às relações de sociedade e classe (admitimos, no entanto, que a autora de A Mulher sem Cabeça já é um referente inevitável do cinema latino-americano).
Aurora é também uma história eminentemente política sobre as diferenças sociais que as leis afectam de modo desigual, e Paz Fábrega evita a queda ostensiva no tema e recusa a denúncia ou o maniqueísmo, mas sem que o seu filme se eleve acima de uma confortável “segunda linha” – o exacto tipo de obras que, cada vez mais e por vezes injustamente, encontram como único destino fora dos festivais as plataformas de streaming. Para um filme que assume orgulhosamente a sua aposta política, olhemos para Landscapes of Resistance da sérvia Marta Popivoda (Tiger Competition), ensaio que releva do documentário, da autobiografia e do statement político, filme-manifesto anti-fascista que procura articular as suas múltiplas componentes de forma cinematográfica sem o conseguir por inteiro.
Landscapes of Resistance é uma obra de urgência sobre o passado, registando, algures entre Wang Bing, Heinz Emigholz e Claude Lanzmann, as memórias na primeira pessoa de Sonja Vujanovic, militante comunista tornada em guerrilheira contra a ocupação nazi que sobreviveu a Auschwitz, e que conta a sua história em off sobre imagens dos próprios locais por onde o seu combate passou. Mas esta é também uma obra de urgência sobre o presente: Sonja, que já faleceu, era a avó de Ana Vujanovic, companheira da realizadora e co-argumentista do filme, e Ana pontua-o com fragmentos do seu diário, mantido ao longo dos dez anos durante a qual o projecto foi sendo rodado e trabalhado, do qual ressaltam as suas preocupações sobre o ressurgimento da extrema-direita e a intolerância para com a comunidade LGTBQ. No entanto: a força da história de Sonja é tal que Marta Popivoda não consegue equilibrar o seu filme — tudo o resto, incluindo a elevação do activismo a combate existencial (“Não precisamos de ser heróis para ser guerrilheiros, mas temos de ser guerrilheiros”) parecem anexos insuficientemente integrados perante o impacto gravitacional da memória que aqui se recorda. O esforço é, ainda assim, meritório.
O estatuto da mulher em sociedades ainda conservadoras é tratado de modo mais oblíquo em Destello Bravío (Tiger Competition), primeira longa da espanhola Ainhoa Rodríguez, rodada com actrizes não profissionais na sua própria aldeia natal na Extremadura. Menos uma narrativa convencional do que um poema tonal à moda de Terence Davies ou de Lois Patiño, onde a observação quase documental se cruza com a auto-ficção fantasmagórica, Destello Bravío olha para o quotidiano das mulheres de Puebla de la Reina, esposas ou viúvas, excêntricas ou desavergonhadas, mas todas prisioneiras de expectativas sociais patriarcais e maniqueístas. Religião, sexo, desejo, desespero, hipocrisia, resignação, tudo se mescla numa aldeia perdida na planície onde os mais jovens se foram embora e apenas ficaram os mais velhos – o retrato do ambiente sufocante de uma ruralidade onde nada parece mudar há décadas e onde nada parece alguma vez poder mudar é precisa e perfeitamente realizado por Ainhoa Rodríguez.
Como Aurora e Landscapes of Resistance, Destello Bravío não oferece respostas, mas lança pergunta nas quais vale a pena pensar. É um bom começo para um festival que, mesmo online, tem muito que se lhe diga.