Primeira estratégia para os direitos da criança. Especialistas querem acção contra efeitos da pandemia
Pilares da estratégia 2021-2024 estão definidos. Plano bienal está a ser preparado. Crise pandémica anuncia aumento de pobreza infantil e de problemas de saúde mental.
Está aí a primeira Estratégia Nacional para os Direitos da Criança, que as organizações do sector há tanto reclamavam. Agora, esperam que o plano de acção bienal, que está a ser preparado pela Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e Protecção de Crianças e Jovens, atenda aos efeitos da pandemia.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Está aí a primeira Estratégia Nacional para os Direitos da Criança, que as organizações do sector há tanto reclamavam. Agora, esperam que o plano de acção bienal, que está a ser preparado pela Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e Protecção de Crianças e Jovens, atenda aos efeitos da pandemia.
Os pilares da estratégia 2021-2024 estão definidos: a promoção do bem-estar e da igualdade de oportunidades; o apoio às famílias e à parentalidade; o acesso à informação e à participação das crianças e jovens; a prevenção e o combate à violência; a criação de instrumentos e conhecimento científico potenciadores de uma visão global dos direitos das crianças e jovens.
“É uma estratégia bem fundamentada”, avalia Gabriela Trevisan, do ProChild CoLab, um laboratório colaborativo que pretende desenvolver uma estratégia de combate à pobreza e à exclusão na infância. “Tem prioridades que estão alinhadas com os direitos das crianças.”
“Para construir uma sociedade coesa e justa, temos de assumir as crianças como uma prioridade política”, corrobora Francisca Magano, directora de Políticas de Infância e Juventude na UNICEF Portugal. “Esta estratégia é uma oportunidade para um trabalho integrado, que articule as várias áreas governativas, as entidades públicas e privadas, que envolva as crianças.”
O documento foi publicado sem medidas, entidades responsáveis pela execução, calendário, metas. O PÚBLICO aguarda há quase um mês que a presidente da comissão nacional, Rosário Farmhouse, aceite um pedido para conversar sobre o que deverá ser o primeiro plano de acção, a apresentar em Março.
Pobreza infantil acima da pobreza geral
“É essencial que este plano de acção tenha em conta esta realidade que hoje vivemos e que está a colocar muitas crianças numa situação muito vulnerável”, torna Magano. A questão central, para si, é a pobreza infantil, que a pandemia está a insuflar.
A taxa de pobreza infantil tem estado sempre acima da taxa de pobreza geral. Para passar às medidas, como explica o sociólogo Fernando Diogo, há que ter em conta que “as crianças não são pobres em si – são pobres no seio de famílias pobres”. E aí sobressaem as famílias monoparentais e as famílias com três ou mais filhos.
“Não basta majorar o abono de família”, sublinha Magano. As transferências sociais fazem a diferença, mas têm um impacto limitado. “É preciso insistir na intervenção precoce, uniformizar o acesso ao pré-escolar, garantir que todas as crianças têm acessos às mesmas oportunidades.”
Fernando Diogo não podia estar mais de acordo: “Se queremos quebrar a espinha dorsal da pobreza, é por aí.” Vacinação, diagnóstico de qualquer doença ou situação que inspire cuidado, intervenção precoce, educação na primeira infância. “Vale a pena colocar a criança na creche e no jardim-de-infância, mesmo que a mãe esteja em casa, sobretudo se tiver uma escolaridade baixa”, diz aquele professor da Universidade dos Açores. “A estimulação é outra, o desenvolvimento é outro.” A escolaridade da mãe pesa mais do que a classe social na reprodução de pobreza.
A estratégia “assume a necessidade de intensificação dos esforços para garantir níveis de vida adequados, promover um ambiente seguro e saudável, implementar respostas efectivas ao nível da saúde”, inclusive mental. “A saúde mental tem sido uma preocupação neste tempo de confinamento e de afastamento da escola, dos pares”, refere Trevisan. Os especialistas não se cansam de alertar para os riscos de transtorno de ansiedade, atraso no desenvolvimento, depressão. “A atenção a esse nível tem de ser grande.”
As crianças, tal como os adultos, não são todas iguais. Magano dá o exemplo das crianças pobres, das crianças ciganas, das crianças refugiadas, que vivem numa situação de maior vulnerabilidade. “Além de medidas universais, é preciso ter medidas específicas”, diz, recordando que o plano de acção terá de se articular com a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, que está a ser preparada. E com a Estratégia Nacional das Pessoas com Deficiência, a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, o Plano Estratégico para as Migrações e outros instrumentos já existentes.
“É uma estratégia ambiciosa”, concede Trevisan. Sabe que um grupo de crianças participou na elaboração do documento – as 103 que formam o Conselho Nacional de Crianças e Jovens. Espera que, como se prevê, a sua participação não se esgote aí. “Uma coisa é ouvir as suas preocupações e vivências, outra é discutir com elas propostas”, esclarece. “É importante garantir um mecanismo de participação que acontece ao longo de todo o processo.”
Tirar crianças das instituições
Sónia Rodrigues, presidente da AjudAjudar, associação para a promoção dos direitos das crianças e dos jovens, chama a atenção para as crianças retiradas às famílias e acolhidas em instituições, tantas vezes relegadas no combate à covid-19. A estratégia promete “incentivar a desinstitucionalização” e qualificar as casas de acolhimento. O documento, porém, é vago. Só fala em reforçar a criação de medidas que privilegiem o acolhimento familiar, qualificar o instituto de adopção” e o sistema de acolhimento residencial, mas como?
As instituições acolhem 97% das crianças e jovens privadas da família. “Temos um acolhimento familiar que é ínfimo, face ao acolhimento residencial”, recorda Rodrigues. “Não precisamos só de o reforçar. Precisamos de o fazer crescer de uma forma que tem de ser muito intencional.”
Aquela especialista lembra que a mudança obriga a transferir crianças do acolhimento residencial para o acolhimento familiar. “É preciso ter coragem de fazer uma selecção das casas de acolhimento que têm condições e qualidade”, diz. “Todas as outras deviam reconverter-se em entidades enquadradoras do acolhimento familiar.” Entendendo que a resistência das instituições tem sido um entrave à mudança, defende que “as instituições que têm valências de acolhimento residencial não têm de ficar prejudicadas com esta transição. Devem fazer parte dela, mas para isso tem de haver coragem política de exigir que algumas respostas de acolhimento residencial acabem.”