Sem receita para os abusos nas vacinas
O plano de vacinação já é uma obra tão gigantesca e tão complexa que é fácil correr mal. Deixar que seja contaminado pela suspeita de vigarice torná-lo-á ainda mais difícil de correr bem.
Estando em causa um bem essencial, como a saúde, e um bem escasso para a garantir, como as vacinas, era inevitável que o melhor e o pior da natureza humana viessem ao de cima. Anúncios como o dos governos da Áustria e da Alemanha de ajuda a Portugal são um conforto para um país aturdido com tantas mortes e com a suspeita de que o seu sistema de saúde já não consegue dar resposta. Mas há também a proliferação de notícias de abusos no acesso a vacinas que minam a ideia de que estamos juntos para enfrentar a crise. E se há ambição importante neste quadro é essa: a de fazer com que o combate à doença e o direito à cura obedecem a regras percebidas por todos e que qualquer violação dessas regras tem de ser penalizada.
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Estando em causa um bem essencial, como a saúde, e um bem escasso para a garantir, como as vacinas, era inevitável que o melhor e o pior da natureza humana viessem ao de cima. Anúncios como o dos governos da Áustria e da Alemanha de ajuda a Portugal são um conforto para um país aturdido com tantas mortes e com a suspeita de que o seu sistema de saúde já não consegue dar resposta. Mas há também a proliferação de notícias de abusos no acesso a vacinas que minam a ideia de que estamos juntos para enfrentar a crise. E se há ambição importante neste quadro é essa: a de fazer com que o combate à doença e o direito à cura obedecem a regras percebidas por todos e que qualquer violação dessas regras tem de ser penalizada.
Não é isso que está a acontecer. Mais de uma semana depois da imprensa ter revelado abusos de gestores dos lares ou de instâncias da administração pública, seja na Segurança Social, seja no INEM, continuamos nas lamúrias das auditorias que tantas vezes servem apenas para diluir os escândalos no tempo e no esquecimento. Não sabemos se os que acederam à vacina sem fazerem parte dos grupos prioritários devem ser apenas penalizados pela censura ética ou se há lugar a um processo crime. Não sabemos sequer se as suas opções, caso dos lares, é legítima ou não. Não sabemos também ao certo o que autoridades determinaram para garantir que a provisão de vacinas vai ser escrutinada e verificada para evitar a questão das sobras.
O vazio serve para incentivar os que se dedicam a procurar uma fenda nas regras para beneficiar indevidamente do privilégio das vacinas. Afinal, o pior que pode acontecer à sua falta de vergonha é serem denunciados por atitudes vergonhosas. Se Francisco Ramos, coordenador do plano de vacinação, tem razão ao dizer que não dar a segunda dose aos que foram indevidamente beneficiados é justiça popular, teria ainda mais se reivindicasse da Procuradoria ou do Governo meios concretos para acabar com a origem deste dilema.
Nesta gestão burocrática das suspeitas de abusos, as autoridades de saúde acabam por inquinar a vacinação com a suspeita do privilégio. Num país descontente, poucas coisas há mais perigosas – que, de resto, leva políticos a refugiar-se na ideia populista que o seu papel na governação do país pode recomendar impunidades judiciais, mas não sanitárias. O plano de vacinação já é uma obra tão gigantesca e tão complexa que é fácil correr mal. Deixar que seja contaminado pela suspeita de vigarice torná-lo-á ainda mais difícil de correr bem.