Pandemia faz esperança de vida aos 65 anos descer
Inversão de tendência deve-se à mortalidade da covid-19 e outras doenças em 2020, ano com o maior saldo negativo de que há registo. Tendência pode agravar-se em 2021 e manter-se no início da década devido às mortes que resultam de situações adiadas pela pandemia.
A esperança de vida aos 65 anos vai diminuir já em 2020, e a pandemia pode marcar uma inversão da tendência crescente deste indicador que estamos habituados a ver aumentar consecutivamente há vários anos. A esperança de vida aos 65 anos (o número médio de anos que uma pessoa ainda tem para viver ao fazer 65) entre 2017 e 2019 estava fixada nos 19,61 anos, mas o número pode descer já no triénio 2018-2020, antecipam os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. A tendência pode agravar-se em 2021 e manter-se no início da década, interrompendo um progresso verificado desde o início dos anos 1990.
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A esperança de vida aos 65 anos vai diminuir já em 2020, e a pandemia pode marcar uma inversão da tendência crescente deste indicador que estamos habituados a ver aumentar consecutivamente há vários anos. A esperança de vida aos 65 anos (o número médio de anos que uma pessoa ainda tem para viver ao fazer 65) entre 2017 e 2019 estava fixada nos 19,61 anos, mas o número pode descer já no triénio 2018-2020, antecipam os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. A tendência pode agravar-se em 2021 e manter-se no início da década, interrompendo um progresso verificado desde o início dos anos 1990.
A regressão é explicada pela mortalidade em excesso de 2020. De acordo com o relatório de dados preliminares do número de mortes de 2020, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), morreram no ano passado mais 12.220 pessoas do que a média dos cinco anos imediatamente anteriores. Do total de óbitos de 2020, 71,8% foram de cidadãos com 75 anos ou mais, sendo que quase 60% tinham 85 anos ou mais. Em relação à média de 2015-2019, morreram mais 10.206 pessoas com 75 anos ou mais, das quais 8032 tinham 85 anos ou mais.
O maior excesso de mortalidade situa-se em idades iguais ou superiores a 90 anos: houve mais 5085 mortes do que a média dos últimos cinco anos, um aumento de 22,5%.
Nem todo o excesso de mortes está directamente ligado à covid-19, mas também na mortalidade da doença se verifica uma prevalência grande de óbitos nas pessoas mais velhas, com perto de 90% a ser em doentes com 70 ou mais anos.
As características deste excesso de óbitos levam a presidente da Associação Portuguesa de Demografia (APD), Ana Alexandre Fernandes, a considerar que é possível haver “algum retrocesso” no indicador da esperança de vida aos 65 anos. Por outro lado, a demógrafa está convencida que a elevada mortalidade deste ano “não vai afectar a esperança de vida à nascença” – um indicador que, segundo os dados mais recentes do INE, se fixou nos 80,93 anos no período de 2017 a 2019.
“Para que a idade diminuísse, era preciso que morresse muita gente antes desta idade, e o que está a acontecer é que a maioria das pessoas está a morrer já depois, acima dos 80 anos. Portanto, se morrem muito tarde, não contribuem para reduzir o número de anos de esperança de vida”, explicou ao PÚBLICO.
Ana Alexandre Fernandes admite que os números de 2020 afectem um pouco os dados da esperança de vida à nascença, mas não o suficiente para um recuo como os que historicamente se verificam em períodos como guerras ou em pandemias anteriores em que a mortalidade era também mais significativa em grupos etários mais novas. Dado o “número pequeno” de vítimas em idades mais jovens, a diferença não será significativa, no entender da especialista. “Esses, sim, iriam contribuir para uma redução, seriam muitos anos de vida perdidos”, diz.
Por outro lado, a demógrafa Maria João Valente Rosa entende que o cenário de 2020 “pode fazer andar para trás o relógio da esperança de vida”. Porque os dados do INE correspondem a triénios, a especialista considera que os próximos indicadores “não serão marcados” pelo último ano por incluírem 2018 e 2019, notando que poderá haver na mesma um ligeiro aumento da esperança de vida, ainda que com um abrandamento. As diferenças serão notadas nos próximos anos, assim como em análises anuais à esperança de vida à nascença, como é o caso dos dados divulgados pelo Eurostat.
“A tendência [de aumento da esperança de vida] que existia no passado, e que já era dada quase como certa, poderá não vir a acontecer”, explica a professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, considerando que não se deve tanto às idades mais baixas, “mas fruto da mortalidade extremamente acentuada nas idades superiores”. Já a descida da esperança de vida aos 65 é uma certeza para Valente Rosa.
Sequelas da pandemia podem manter a descida nos próximos anos
Os dados do INE relativos à esperança de vida aos 65 anos mostram uma tendência consistente de aumento ao longo dos anos. Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO prevêem que a covid-19 inverta esta realidade, tanto no triénio 2018-2020 como no seguinte (2019-2021). Os peritos ainda não quantificam as quedas.
É preciso recuar até aos anos 1980 para encontrar dois períodos consecutivos sem aumentos da esperança de vida aos 65 anos: de 1987 a 1989 foi de 15,66, desceu de 1988 a 1990 para 15,60 e manteve esse valor no intervalo seguinte, de 1989 a 1991.
A situação é semelhante nos dados do Eurostat, com descidas pontuais em alguns anos, mas uma tendência manifestamente crescente nos dois indicadores. Esta que era a norma pode, no entanto, deixar de se o ser neste arranque de década, resultado da mortalidade directamente relacionada com a pandemia em 2020 e, pelo menos numa fase inicial, em 2021, e mantida depois por efeitos indirectos da pandemia.
“Voltamos para trás. A minha sensação é que, neste enquadramento, vamos recuar no tempo”, considera Maria João Valente Rosa, realçando que o aparecimento de uma doença infecto-contagiosa nas principais causas de morte é também outro indicador de outros tempos em que este tipo de doenças eram responsáveis pela fatia maior de óbitos – algo que actualmente só se verifica nos países em desenvolvimento dados os avanços “muito significativos” nos tratamentos, vacinações e das condições de vida.
Nos próximos anos, os maiores riscos para o retrocesso nestes indicadores são os possíveis casos em que certas situações clínicas vão ser diagnosticadas ou tratadas tardiamente devido à alocação de recursos na luta contra a pandemia e ao próprio medo das pessoas que as leva a atrasar idas ao médico.
“Várias situações que muitas vezes aconteciam e que, praticamente no imediato, eram diagnosticadas, são agora deixadas passar pelas pessoas, e muitas vezes esse deixar passar torna-se irreversível”, avisa a demógrafa Maria João Valente Rosa, acautelando que é preciso “ver a dimensão do que ficou para trás”.
“Se nós, neste momento, estamos a deixar para trás consultas de seguimento, a atrasar cirurgias e tratamentos, é evidente que assim vão morrer mais pessoas e não vão viver até mais tarde”, corrobora ao PÚBLICO José Rueff, director do Centro de Investigação em Genética Molecular Humana da Universidade Nova de Lisboa.
Já Ana Alexandre Fernandes assume uma visão mais “optimista” da situação, considerando que Portugal tem capacidade e “um bom sistema de saúde” para conseguir recuperar o tempo perdido a partir do momento em que os recursos deixem de estar tão concentrados na resposta à pandemia. A presidente da APD assume que vão existir casos de diagnósticos e intervenções tardias, perdas humanas “muito fortes”, mas que estatisticamente não devem ser significativas ao ponto de baixarem a esperança de vida.
“Se isso acontecer, é porque efectivamente regredimos muito nas nossas condições de vida. Se vier a acontecer, estaremos muito mal, porque há uma condição de vida estrutural que faz com que a esperança de vida esteja àquele nível. E se vier a haver uma regressão é porque a degradação das nossas condições também é muito significativa para afectar essa condição estrutural de propensão a morrer”, avisa.
O pior saldo natural desde 1918
O INE ainda não divulgou os dados de Novembro e Dezembro para a natalidade e mortalidade em Portugal, mas se completarmos o ano de 2020 com os registos de “testes do pezinho” do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e com as mortes registadas no sistema de monitorização da Direcção-Geral da Saúde (Sico), chegamos à conclusão de que 2020 pode ter chegado a um saldo natural negativo (nados-vivos menos óbitos) de perto de 40 mil. Até o ano passado, o saldo mais negativo tinha-se verificado em 2018, com 26.031. A confirmar-se essa aproximação da diferença de 40 mil entre nados-vivos e óbitos, isto significa uma subida do saldo natural negativo de quase 54%.
Os dados do INSA adiantados esta semana mostram que houve uma diminuição do número de “testes do pezinho”, que normalmente estão próximos das estatísticas dos nados-vivos por serem realizados nos primeiros dias de vida dos bebés. Em 2020, foram feitos 85.456 testes, menos 1908 do que no ano anterior.
A maior diferença está na mortalidade, onde os dados do Sico mostram que Novembro e Dezembro foram os piores de 2020, contribuindo para um saldo que já se verificava muito negativo em Outubro, com menos 28.593 nascimentos do que mortes – o suficiente para ser o pior registo de que há memória, com excepção de 1918, ano da gripe pneumónica.
Maria João Valente Rosa sublinha que os efeitos da pandemia são apenas notórios na mortalidade. A natalidade, apesar de ter descido, não reflecte ainda o impacto da pandemia “em termos directos” devido ao desfasamento de cerca de nove meses entre o momento da concepção e do nascimento. O efeito directo sobre os nascimentos vai, assim, ser sentido em 2021, e “em força”.
“Sabemos que momentos de forte insegurança e incerteza têm efeitos num adiar do projecto de parentalidade”, diz a demógrafa. “E nascimentos muito adiados muitas vezes correspondem a nascimentos perdidos.”
Há ainda outro efeito a realçar e que pode influenciar o saldo de nascimentos ocorridos em Portugal: as imigrações. “Sabemos que o contributo das mulheres de nacionalidade estrangeira para nascimentos ocorridos em Portugal é extremamente significativo. Acontece que, se porventura o número de estrangeiros em Portugal diminuiu e se muitas pessoas que estavam no país saíram neste período, isto pode afectar pela via indirecta os nascimentos”, justifica.
O saldo migratório é positivo desde 2017 e tem sido importante para neutralizar e até reverter a tendência de decréscimo populacional no país: em 2019 um aumento significativo do saldo migratório permitiu até a primeira taxa de crescimento populacional positiva desde 2009. Ainda que seja preciso esperar pelos dados dos fluxos migratórios para 2020, no entender de Maria João Valente Rosa a situação pandémica vai diminuir a entrada de novos habitantes e conduzir a um novo saldo populacional “muito negativo”.
Ana Alexandre Fernandes sublinha que o saldo natural tão dramático “é o impacto directo das circunstâncias, não só do ponto de vista da saúde, mas também económico”.
A demógrafa realça que o efeito da pandemia só se vai fazer sentir na natalidade em 2022, referindo que a situação pode começar a melhorar mal comecem a sair os primeiros sinais de que a fase pior está a ficar para trás: “É um indicador de esperança, as pessoas apostam no nascimento de uma criança.”