A democracia e os mortos
“Como conseguir que a nação inteira se una e aja como um corpo único, neste momento de divisão, de esgotamento e catástrofe? Só unidos poderemos resistir e, apesar de todas as perdas e feridas, sair talvez mais fortes desta catástrofe.” Reflexões do filósofo José Gil sobre os pilares em que assenta o “espírito da democracia”.
Na véspera da tomada de posse como Presidente dos Estados Unidos, Joseph Biden rendeu homenagem aos mortos pela covid-19, numa cerimónia surpreendente. Ao crepúsculo, milhares de lâmpadas plantadas no solo, alinhadas em longas perspectivas, fizeram ressurgir os mortos, enquanto Biden e Kamala Harris guardavam o silêncio. Qualquer coisa de extraordinário se passou ali, durante uns minutos. Não se tratou apenas de uma evocação, nem de um rito fúnebre. Foi muito mais do que um cerimonial simbólico, pois a multiplicidade de lâmpadas referia indivíduos concretos, singulares, não simbolizados. Foi como se, num grande cemitério, os defuntos acordassem.
Que aconteceu, então? Nas poucas palavras que, logo a seguir, Biden proferiu, destaca-se a frase: “Para sarar, é preciso lembrar. E é duro fazê-lo.” Pode admitir-se que, no espírito do Presidente eleito, se tratava de um ritual terapêutico. Sarar os males políticos, a doença e a dor da perda. Sarar a violência social e o sofrimento das famílias. Instintivamente, talvez, ele percebeu que, para curar, era preciso tornar presentes os mortos. Fê-lo graças à espectralidade da presença dos defuntos: estiveram ali, estranhamente vivos, ao lado dos vivos.
Com esta cerimónia, Biden realizou, com êxito, uma difícil operação que se prolongou no dia seguinte: a famosa “transição”, não só de uma Administração para outra, mas de um mundo caótico (de Trump) para a nova América que ele quer construir.
De um só golpe, naquele instante, entrámos sem sobressaltos numa outra época. Uniu a nação convocando, espectralmente, a comunidade dos mortos. Para além dos conflitos, das desigualdades e das injustiças que separam, uniu a nação dividida, insuflando-lhe, num estilo a que esta já se desabituara, um elixir vital: a espiritualidade, agora trazida pelos mortos (e que o mundo de Trump varrera da América).
Biden conseguiu articular as duas dimensões mais importantes da vida dos americanos, a saúde e a política, catastroficamente desarticuladas durante a pandemia. Articulação que continua a falhar na maioria dos países. Não é pela ausência de uma política de saúde eficaz (promovida por certos governos, autoritários ou não), nem pela irresolução de dilemas como a que opõe o estado de emergência ao Estado de direito (nas democracias liberais), mas sim pela falta de um terceiro factor que combine, estreitamente, o combate contra a pandemia e uma política democrática. E esse factor não se situa nem no plano político nem no plano ético. Biden foi buscá-lo à comunidade dos mortos, vítimas da covid-19, conferindo à espiritualidade um alcance político e um alcance terapêutico, fundindo, num mesmo sofrimento, o mal social e o mal sanitário.
Curiosamente, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, no discurso de vitória das presidenciais, na noite de 24 de Janeiro, dedicou os primeiros minutos a evocar os mortos da pandemia, como se, ele também, pressentisse que se impunha articular o sofrimento e a morte dos portugueses com o plano dos desígnios políticos. Mas não chega elevar a saúde a primeira prioridade política governativa. Neste momento extremo de perigo, requer-se uma simbiose entre a luta contra a doença e a democracia. Articular significa, aqui, unir a saúde e a política, de maneira que a motivação política se torne, por vocação interna, terapêutica, e que, o cidadão comum veja, na aplicação de medidas sanitárias, a concretização das motivações do seu ser político. Só assim será possível criar confiança, através do sentimento de pertença a uma comunidade.
Dentro e fora dos hospitais
A pandemia deslocou a população portuguesa para um novo mapa de geografia humana: dentro dos hospitais e fora deles, formou-se o grupo dos “doentes covid” e o pessoal de saúde que os trata, lidando diariamente com a morte e a vida. Comunidade de perda e sofrimento, de trabalho e cansaço extremos, à beira da exaustão. Constituindo grupos empenhados em tarefas imprescindíveis, não confinados, vêm os serviços do Estado e os outros, sem (aparentemente) contacto directo com o vírus e com os doentes. Em terceiro lugar, todos os confinados, dos lares, do trabalho e do ensino a distância, a que se juntam os privados independentes.
À excepção dos membros do primeiro (e talvez, também, do segundo) grupo, todos padecem de um mal bizarro: sofrem de um desajustamento entre o seu viver da sobrevivência perante o perigo de contágio, e o seu viver da cidadania; entre as preocupações quanto à saúde de familiares e de próximos, e a compaixão pelos outros, doentes ou não; entre a dor sentida pela perda de alguém, e o medo que nasce da proliferação do vírus que assola o país; entre a vida pessoal e a tragédia nacional. Muitos, pela relativa passividade a que o confinamento os levou, outros, pela leviandade com que continuam a viver, não sentem laços reais, emocionais e práticos, imediatos com a comunidade dos doentes e dos profissionais de saúde. Próximos e distantes uns dos outros, uma película invisível parece separá-los da vida real. Todos vivem uma espécie de suspensão da vida democrática, da vida livre, como se cada gesto, cada acto tivessem um só objectivo, exclusivamente dependente da pandemia: salvar vidas e sobreviver.
O tempo normal, a vida simples, inconsciente de si, há-de vir depois. Mas o depois não existe hoje, envolvidos que estamos no presente da luta contra o vírus ou acantonados no esforço de durar. Como conseguir que a nação inteira se una e aja como um corpo único, neste momento de divisão, de esgotamento e catástrofe? Porque só unidos poderemos resistir e, apesar de todas as perdas e feridas, sair talvez mais fortes desta catástrofe.
Brincar com a vida humana
A pandemia pôs a descoberto, maciçamente, os disfuncionamentos de muitos serviços, e as graves falhas do nosso sistema social e político. As insuficiências do Serviço Nacional de Saúde, a falta de recursos e de incentivos, a injustiça do tratamento reservado aos velhos nos lares, a escassa protecção sanitária dos trabalhadores não confinados, a deficiente organização do sistema educativo, o desprezo pela mulher considerada como inferior (violência doméstica), todas estas chagas da nossa vida social ganharam uma relevância, como nunca, durante a pandemia. Não só porque aumentaram em número e porque foram amplamente mediatizadas, mas porque a sua importância tomou um outro sentido: foi e é, sob fundo de morte — ou de fragilização extrema da vida —, que estes males foram e são percepcionados e tacitamente avaliados.
Uma sensibilização intensa às injustiças e desigualdades apoderou-se das pessoas. A morte de idosos num lar mal protegido, o espancamento de uma mulher confinada, o ministro que impõe férias para esconder a impreparação das escolas para o ensino à distância, são acontecimentos imediatamente considerados inadmissíveis e escandalosos: como foi possível que ocorressem, quando morrem todos os dias centenas de homens e mulheres? Como é possível brincar com a justiça, enquanto a doença e a morte condenam brutalmente tantos inocentes? Brincar com a vida humana tornou-se intolerável.
Neste momento extremo de ruptura dos serviços hospitalares, de desnorte das populações, de distância que se alarga entre a classe política e a comunidade, a democracia esboroa-se e claudica. A representatividade dos responsáveis é cada vez menos evidente, as decisões políticas são cada vez mais controversas, o mal-entendido entre os governantes e os cidadãos é cada vez maior. Os portugueses sentem todos os dias a perda da coesão social. Revêem-se pouco no estilo e no conteúdo das mensagens dos governantes. Confinam-se mais por medo e hábitos de obediência do que por solidariedade activa. A sociedade dos vivos, já de si atomizada e irritada pela pandemia, separou-se dos seus mortos, tornados anónimos, distantes, empilhados em morgues ou contentores frigoríficos — como aconteceu em Itália e Nova Iorque e acontece ainda em Manaus, no Brasil.
O caos espreita um pouco por todo o lado. A morte paira agora sobre as nossas cabeças, não apenas a morte física, mas o desespero, a impotência mortífera de cada um perante o que se está a passar. O desânimo ameaça muitos, que se abandonam ao destino (“daqui a pouco vou eu”). A conversa mais comum, os ditos fáticos, impregna-se de referências à vida breve, à imprevisibilidade de tudo, ou à fatalidade de morrer. Muitos não sabem o que fazer, alguns são tentados a afastar-se da democracia, a vida política nacional não se envolveu verdadeiramente no combate contra a pandemia.
Este clima esquizofrénico, que o sofrimento e a ansiedade envolvem de nevoeiro, põe a nu, afinal, um esquecimento já antigo, que afecta todo o viver democrático da sociedade e do sistema político: o esquecimento da presença dos mortos, cada vez mais obliterados e inexistentes nos nossos gestos e pensamentos. E, no entanto, essa presença pode ser um factor decisivo para a vitalidade da democracia.
A morte e a vida
Perante a efemeridade da vida, agora intensa e imediatamente sentida, cada existência adquire um valor infinito. Ao invés do sentimento comum, habitual, de que não morremos (ou não morreremos) nunca (“a morte é para os outros”), a possibilidade de morrer invade-nos a cada instante, obceca o nosso presente.
Nesse sentimento de imortalidade quotidiana, o valor da vida anula-se, desaparece. Não se dá valor à vida porque só existe vida. Mas quando o perigo de morrer surge, cada vida torna-se única e sem preço. Digamos que dois princípios regem este sentimento da precariedade da vida, pela iminência da morte. O primeiro é um princípio de igualdade: todos nós vamos morrer, a morte revela não só um destino comum, mas também a natureza de quem morre, natureza humana despojada dos valores sociais que trazia consigo, ouropéis, estatutos, riqueza, talento, virtudes e vícios. Sou apenas um ser humano, uma vida nua. A presença ubíqua da morte reforça o sentimento de igualdade que já existia, e existe sempre, mais ou menos latente, mais ou menos explícito, em todos os homens. O paradoxo desta visão da vida individual (de que falaram tantos místicos, poetas, pensadores) é que não se trata da vida biológica, mas do valor de uma vida, para além da simples existência física.
O segundo princípio define a singularidade de cada um. A mesma morte que não discrimina nem valoriza uns em detrimento de outros, afirma a singularidade do defunto e, por refluxo, a do ser vivo que foi antes. Os dois princípios não se contradizem, encadeiam-se: é porque a singularidade de uma vida é incomparável que ela é igual, na diferença irredutível com todos, a todas as outras vidas. E esta igualdade só a morte — da vida nua — a pode oferecer.
Vemos assim como a espiritualidade nasce de uma vida perspectivada deste modo perante a morte. Nasce quando a singularidade se descobre na força expansiva, multiplamente única, que moveu cada ser humano, no tempo em que durou — e que define, por exemplo, “o que foi” tal criador, tal homem comum, através das suas obras e da sua vida.
É nestes dois princípios, de igualdade e de singularidade, que assenta o espírito da democracia. São eles que regem o Estado laico democrático, é deles que decorre a possibilidade do exercício da justiça e da livre coesão dos indivíduos e da comunidade. É a uma certa espiritualidade dos mortos no exercício da vida que a democracia pode ir buscar as forças vitais para o seu funcionamento.