Desumana, desnecessária, dispendiosa: há que abolir a detenção de migrantes
Há que abolir a detenção de migrantes apenas pela sua condição de migrantes indocumentados, e estamos perante uma oportunidade histórica de o fazer.
Mariam aterra no aeroporto de Lisboa e apresenta-se às autoridades de fronteira sem parte dos documentos necessários para entrar no país. É levada para o centro de detenção de migrantes, gerido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a que se chama Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT), de onde ficará impedida de sair por várias semanas. Durante esse tempo, é-lhe vedado o acesso à sua bagagem, bem como ao seu telemóvel, por alegadas razões de segurança. A sua única possibilidade de contacto com o exterior é através de um advogado oficioso, mas até o acesso a representação legal lhe é dificultado. Tem de pernoitar num local com dezenas de colchões espalhados pelo chão, sem privacidade, impossibilitada de sair, de comunicar com o exterior e até de trocar de roupa. Mariam não ousa não colaborar nem reivindicar os seus direitos. Já viu quem o fizesse e tivesse sido levado para “a salinha” – uma divisão sem câmaras onde inspectores do SEF, munidos de bastões, já torturaram várias das pessoas com quem se encontra detida.
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Mariam aterra no aeroporto de Lisboa e apresenta-se às autoridades de fronteira sem parte dos documentos necessários para entrar no país. É levada para o centro de detenção de migrantes, gerido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a que se chama Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT), de onde ficará impedida de sair por várias semanas. Durante esse tempo, é-lhe vedado o acesso à sua bagagem, bem como ao seu telemóvel, por alegadas razões de segurança. A sua única possibilidade de contacto com o exterior é através de um advogado oficioso, mas até o acesso a representação legal lhe é dificultado. Tem de pernoitar num local com dezenas de colchões espalhados pelo chão, sem privacidade, impossibilitada de sair, de comunicar com o exterior e até de trocar de roupa. Mariam não ousa não colaborar nem reivindicar os seus direitos. Já viu quem o fizesse e tivesse sido levado para “a salinha” – uma divisão sem câmaras onde inspectores do SEF, munidos de bastões, já torturaram várias das pessoas com quem se encontra detida.
Mariam é uma personagem fictícia, mas cada detalhe da sua história é real e sentido na pele por muitas das pessoas que procuram vir para Portugal todos os anos. Entre elas, estão crianças, mulheres grávidas, requerentes de asilo e outras pessoas particularmente vulneráveis. Só entre 2015 e 2016 (período ao qual se referem os dados disponíveis mais recentes), 4515 pessoas foram detidas à chegada, de acordo com o relatório do Global Detention Project. Estes números mostram uma realidade que aprendemos a aceitar sem questionar: no nosso país, migrantes são detidos por serem migrantes indocumentados, não por terem cometido qualquer crime.
A lei internacional permite a detenção de migrantes apenas para determinar a sua identidade, para assegurar que a pessoa detida cumpre os processos legais a que está sujeita ou no caso de esta representar um perigo para si própria ou para outros. Ainda assim, mesmo nestes casos, a lei estabelece que a detenção deve ser utilizada somente como último recurso. Migrar não é um crime, segundo a lei portuguesa. E privar uma pessoa da sua liberdade quando nenhum crime foi cometido ou como pretensa salvaguarda de que tal venha a ocorrer é contrário a um Estado de Direito.
Há que abolir a detenção de migrantes apenas pela sua condição de migrantes indocumentados, e estamos perante uma oportunidade histórica de o fazer.
Segundo o Diário de Notícias, foi recentemente apresentado o plano do Governo para a reestruturação do SEF. Será criado um novo serviço incumbido de tratar dos assuntos administrativos, enquanto as funções policiais serão responsabilidade da PJ, PSP e GNR. O Ministério da Administração Interna (MAI) planeia pôr os centros de detenção dos aeroportos sob tutela da PSP. Ainda que retirar essa responsabilidade do SEF seja um passo importante, a possibilidade de o MAI optar por incumbir outros corpos policiais dessa função é extremamente preocupante. Nos últimos anos, PSP, PJ e GNR têm sido alvo de inúmeras acusações de abusos, tendo o Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa exortado Portugal a adoptar “medidas concretas no sentido de resolver o problema real e persistente de maus-tratos por agentes da autoridade”. Embora a separação entre funções policiais e administrativas seja bem-vinda, parece-nos altamente improvável, senão impossível, que tais mudanças superficiais conduzam a uma gestão das nossas fronteiras que respeite os Direitos Humanos.
É preciso ir mais além. É preciso acabar com os centros de detenção de migrantes. As razões são claras:
É desumano.
Académicos e organizações de defesa dos direitos humanos afirmam que a detenção de requerentes de asilo leva ao desenvolvimento de sintomas significativos de depressão, ansiedade, stress pós-traumático e até automutilação. Além disso, os sucessivos relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção contra a Tortura, redigidos pela Provedoria de Justiça, têm descrito os centros de detenção do SEF como “locais onde persistem vários problemas tidos já como fatores de risco para ocorrência de tortura e maus-tratos”.
Ao longo dos últimos meses, temos vindo a tomar conhecimento de cada vez mais detalhes do assassinato brutal de Ihor Homeniuk às mãos dos inspectores do SEF no EECIT de Lisboa. A atenção mediática que este caso mereceu levantou o véu sobre inúmeros outros relatos de violência e tratamentos degradantes nestes centros.
Ainda no passado mês de dezembro, nove meses após o assassinato de Ihor e após o ministro Eduardo Cabrita ter defendido que as circunstâncias que resultaram na sua morte eram únicas, Gilson Pereira, um cidadão cabo-verdiano detido no EECIT, em Lisboa, contou ao PÚBLICO: “[Inspectores do SEF] amarraram-me os pés, meteram-me em cima da cadeira de rodas, caí no chão e depois meteram-me o joelho no pescoço.”
Não há espaço para dúvidas: a morte de Ihor não foi um acaso mas tão somente uma inevitabilidade, dado o historial de violência ali praticada.
É desnecessário e dispendioso.
Medidas já implementadas com sucesso noutros países, como Bélgica, Suécia e Austrália, incluem a apresentação periódica às autoridades, a instalação em centros dos quais se pode entrar e sair, e outras alternativas que não restringem a liberdade de movimento. A primeira destas está até contemplada no artigo 142.º da Lei de Estrangeiros.
Privar alguém da sua liberdade tende a aumentar a desconfiança nas autoridades, dificultando a resolução dos processos. Além disso, as alternativas, por garantirem às pessoas os seus direitos, apresentam taxas de cumprimento dos procedimentos legais entre 77% e 96%.
A detenção de pessoas migrantes não é só desumana e desnecessária. É também dispendiosa. Estudos levados a cabo nos Estados Unidos da América, Canadá, Áustria e Bélgica, por exemplo, mostram que as alternativas custam uma fração do que custa a própria detenção.
Se as alternativas funcionam, porque não as utilizamos?
A abolição do SEF é iminente, e podemos encará-la de duas formas: como uma reforma de fachada, em que as reestruturações levadas a cabo mantêm tudo igual, ou como uma oportunidade para criar um sistema mais justo e solidário.
Deter migrantes inocentes é desumano, é desnecessário, é perigoso e é dispendioso. A necessidade de mudar é antiga. A oportunidade é agora.
Investigação realizada pela HuBB – Humans Before Borders
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico