Confinamento, a sequela
A necessidade imprescindível de um novo confinamento está a criar uma espécie de stress pós-traumático nos milhares de pessoas que tiveram sintomas de ansiedade e depressão durante todo o 2020.
Os vizinhos hão-de dizer que não mora cá ninguém. Não fosse a música nas colunas, os sons esporádicos da máquina de lavar roupa ou uma queda fortuita de um objecto na cozinha, e o silêncio seria rei deste apartamento. Passam-se horas, por vezes até dias, em que não falo. Quando sair voz desta garganta, saberei reconhecê-la como minha?
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Os vizinhos hão-de dizer que não mora cá ninguém. Não fosse a música nas colunas, os sons esporádicos da máquina de lavar roupa ou uma queda fortuita de um objecto na cozinha, e o silêncio seria rei deste apartamento. Passam-se horas, por vezes até dias, em que não falo. Quando sair voz desta garganta, saberei reconhecê-la como minha?
Todo este silêncio fez acordar um bicho: habita um aranhiço no meio de nós. Dentro de nós. Um aranhiço que não abre telejornais, um aranhiço de que não se fala nos cafés ou noutras conversas circunstanciais. Um aranhiço clandestino que é apenas comentado em surdina em círculos fechados, porque não é segura a partilha de uma visão aterradora. Porque nem todos acreditam no aranhiço, porque muitos nem querem crer que viram o aranhiço ou, pior, que vivem com ele.
E nós, que vemos o aranhiço com tanta clareza? Como nos comportamos? Eis a atitude mais comum: quando não ouço falar deste aranhiço, penso que sou o único a vê-lo. Estarei louco? É melhor não contar a ninguém sobre o aranhiço. Podem pensar que a visão é contagiosa e que também eles se assombrarão com o aranhiço, e é aí que a minha solidão me esmagará mais ainda. Uma solidão pior. Prefiro calar e conviver com o aranhiço, sozinho, e fingir que estou bem com o aranhiço mesmo aqui de braço dado, para não afugentar aqueles que ainda estão comigo.
Não. Não és o único a vê-lo, e quantos mais falarmos disto, menos medo nos causará o aranhiço. Quando falamos dele, o aranhiço fica mais pequeno e ser-lhe-á impossível esmagar-nos. Porque somos muitos perante ele. Um exército de ansiosos e deprimidos.
A necessidade imprescindível de um novo confinamento está a criar uma espécie de stress pós-traumático nos milhares de pessoas que tiveram sintomas de ansiedade e depressão durante todo o 2020. Nos últimos dias, muita gente confessou-me o que eu próprio sinto há vários dias: um terror perante a ideia de confinar violentamente de novo. Uma sequela da solidão, uma sequela do isolamento. Um vírus do vírus.
E precisamos de conversar abertamente sobre isso, porque nunca sabemos quem podemos estar a aliviar de um stress esmagador, ou de um evento ainda pior.
Começo eu. O confinamento de 2020 foi devastador para a minha saúde mental. A solidão absoluta de viver sozinho, mais o medo de uma doença desconhecida que me poderia ceifar familiares próximos, mais o pavor de não estar à altura de me manter funcional perante um estado de ansiedade cujo potencial conheço há anos. Felizmente, consegui manter-me à tona. Por fora, continuava animado e alegre, trabalhando e mantendo o trabalho – reconheço essa fortuna, que muitos perderam. Mas, por dentro, uma hecatombe.
O que eu conhecia de mim ruía: durante meses, não fui capaz de escrever – o que, para um tipo que vê na escrita uma parte central da sua identidade, é capaz de ser grave -; tinha dias em que sair da cama era a única vitória que alcançava, enquanto as paredes nuas da casa pareciam avançar sobre mim. E depois há o peso daqueles que nos são próximos e que, impotentes, não sabem como nos ajudar, criando um foco adicional de ansiedade sobre nós, porque sabemos que lhes estamos a criar ansiedade. Uma pescadinha de rabo na boca, num cenário em que a pescadinha tivesse esbarrado num pote de cocaína. Eis outra fortuna: tinha sempre com quem falar, à distância, mas isso pareceu sempre pouco. A ideia de sermos bichos sociais nunca fez tanto sentido.
E agora, diante da inevitabilidade e da necessidade inescapável desta nova prisão, estamos apavorados. O pior é que não sei bem como é que isto se resolve. Não temos alternativa à prisão: o vírus da rua é ainda mais perigoso do que este que vive nos nossos crânios. Mas, provavelmente, falar disto já é uma pequena ajuda. Para mim, pelo menos, escrever e assumir que vivo com o aranhiço já é um pequeno-grande processo de cura, ou de alívio.
Presumo que experimentar coisas novas e fazer delas um hábito possa ser uma pequena salvação, mas quem sou eu para te dizer o que fazer perante a ameaça do aranhiço? Encontra-te. E encontra com quem possas conversar. A terapia não é vergonha – é salvação. E diz em voz alta que vales mais do que o aranhiço.
Abraça o aranhiço, porque ele não é inimigo externo. O aranhiço é parte de ti, e quanto mais depressa o aceitares, mais depressa serás capaz de conviver com ele.