Explicar André Ventura ou um aviso à navegação
Perceberão Costa e Marcelo que é na educação letrada que pode estar uma das soluções para a crise que, no pós-covid, teremos de vencer? Da liberdade do espírito, de justiça social, de salários dignos, disso se faz a democracia.
“Ó Portugal, hoje és nevoeiro!”
F. Pessoa, Mensagem, 1934
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“Ó Portugal, hoje és nevoeiro!”
F. Pessoa, Mensagem, 1934
Não julgo surpreendente – só talvez no Alentejo – os resultados obtidos por André Ventura. Professor que sou há quase 20 anos, pude ver como, gradualmente, o modo como as referências culturais, a memória, a história, a cultura livresca, se foram diluindo. Não podemos separar o resultado do candidato do Chega, assente numa lógica única de difamação dos outros candidatos e em mentiras. A difamação e a mentira tornaram-se moeda de troca em Portugal, seja em que plano da vida colectiva se tratar.
Este resultado é, na minha perspectiva, reflexo de várias falências que estão ocorrendo nas instituições portuguesas desde há vinte, vinte e cinco anos a esta parte. A instituição Educação (Escola e Universidade) estão reféns, há praticamente um quarto de século, de uma lógica neoliberal não só no que tange à gestão e administração escolares e do Ensino Superior, mas no próprio modus operandi da vida educativa; daquilo que, enfim, designarei por quotidiano escolar e universitário. Trata-se, como tantas vezes referi já, e outros que pensam sobre este magno problema igualmente apontam, de um quotidiano desvitalizado, burocrático, pobre, vazio de quaisquer ideais de elevação do espírito. Os alunos que, há 25 anos, grosso modo, frequentam a Escola e a Universidade não encontram aí qualquer passaporte para que se auto-descubram e projectem, com pragmatismo e utopia (não são inconciliáveis), as suas melhores energias. Desvitalizados, frequentam a Escola e a Universidade, na generalidade dos casos, ao sabor das modas e das conveniências. Das modas: arregimentados pelo digital, divorciados do livro, da memória e da cultura letrada. Das conveniências: defendendo – é o que vamos vendo por aí – avaliações online, aulas online, tudo para que não haja trabalho de facto, tudo em nome do sucesso imediato. Entre o bocejo e a excitação pacóvia, filhos do Sol da Caparica, do Super Bock Super Rock, os jovens nascidos no ano 2000 chegaram à idade de votar.
A falência de valores que julgávamos assegurados (a democracia nunca está assegurada, são muitos os oportunistas que depois de Abril dela se serviram para chegarem a lugares de poder), fruto de uma ideologia vazia, de uma política de décadas ancorada em clientelismos, tacticismos e propaganda – das televisões à imprensa, da publicidade aos programas escolares –, tudo o que se deu aos jovens nascidos já neste século foi uma forma de ser e de estar em Portugal que se explica facilmente: boçalidade, facilidade, alienação e consumismo. Isso explica André Ventura, até porque, dentro do quadro mental e de referências dos mais novos, é o show-off que conta, as palavras atiradas como pedras aos que dialogam e pensam. Pensar é um verbo ignoto para muitos... Quando Setúbal, Portalegre, Évora e Beja votam em André Ventura, isto significa que o Alentejo mudou. Não é já território invencível do PCP. Os jovens que vivem no Alentejo, mas também os pensionistas e reformados, a mole de desempregados que vegeta nos cafés de bairro, nas ruas desertas de Baleizão, de Moura, de Serpa, da Vidigueira, de Beja, de Odemira – essa massa enorme de portugueses a quem a democracia só deu desertificação, desemprego e desistência (os três “D”?) sente-se enganada.
De Trás-os-Montes ao Algarve, do Litoral ao Interior, os portugueses vêem a corrupção nos organismos do Estado, comentam os casos BPN e BES, os ordenados dos gestores que despedem a torto e a direito e recebem prémios por essa política de terra queimada; os portugueses são incultos, por muitos telemóveis que tenham – e é por isso que germina este neo-fascismo. Cilindrados por uma televisão que manipula, estupidifica e aliena, os portugueses não compram jornais de qualidade, não lêem literatura de facto, seguem os Rodrigues dos Santos da moda, as Cristinas Ferreiras da alarvidade, mimetizam os Venturas do burgo. São muitas décadas de empobrecimento e secundarização das Humanidades, de má preparação dos docentes, de fraquíssima educação centrada na leitura, no trabalho paciente e árduo. Os jovens desistem da escola muito cedo. Se frequentam o ensino superior lá chegam sem saber ler e escrever a sério. Sobre história de Portugal e da Europa, sobre a Ditadura e o 25 de Abril têm ideias vagas, imprecisas, uma enxurrada de lugares-comuns (é ver o que se escreve e como nos Exames Nacionais, sejam de Português ou de História, de Economia ou de qualquer outra disciplina). Desconhecem o onde, o quando, o como, o porquê, o quem e o para quê de muita coisa. “O rapaz estuda nos computadores/ dizem que é um emprego com saída”, diz a canção... Miserabilismo absoluto: licenciados à bolonhesa, filhos do facilitismo, votam em função dos valores, das ideias e das expectativas que têm. André Ventura é o seu reflexo, pobre reflexo.
Arrastam, estes novos eleitores, filhos do século, uma existência sem ideal, julgando – como lhes dizem os governantes – que são “a geração mais preparada de sempre”. À distância dum clique – assim julgam que se fez e faz o mundo. Ler? É chato, dá trabalho. Escrever bem? Como, se tudo está na Wikipedia, nas plataformas digitais e posso plagiar? André Ventura explora essa ausência de ideal. Nascido, ele mesmo, da mentalidade oca da tecnocracia triunfante, poderá ter acabado o seu curso com média de vinte valores, mas isso, por si só, não faz dele nem um orador entusiasmante (por muito que grite e berre), e muito menos faz dele alguém inteligente e culto. Sucede é que, num país com dois milhões e meio de pobres, André Ventura, secundado por forças obscuras da alta finança e de certas cúpulas dos partidos (o PSD trai já a sua história, mas a sua história talvez não seja outra que não a de ter albergado os ressentidos do Estado Novo), cavalga a onda da corrupção à sombra da qual muitos “democratas” de pós-Abril viveram.
Os reformados, os desempregados, os que foram roubados por Ricardo Salgado (e não o vêem preso), pelos negociantes do BPN (quem foi levado à barra?), os que foram espoliados das suas poupanças, a somar aos novos eleitores nascidos sem ilustração, vaidosos, quantas vezes, da sua oceânica insipiência (os olhos dos nossos adolescentes oscilam entre o gozo e a raiva), tudo produto de políticas de educação falhas de qualquer compromisso com ideal de cultura – de Alta Cultura –, tudo isso tem de ter consequências. No país dos técnicos, dos “profissionais da educação”, do excel, dos exames, da burocracia que esmaga e padroniza, só me lembro de Pessoa: somos o povo mais disciplinado da Europa. Por isso, sem ninguém jamais romper com a tendência orgânica para pensarmos em manada, não admira que um Ventura – um triste ventura – possa sonhar com o assalto ao poder. Perceberão Costa e Marcelo que é na educação letrada (as artes, meus senhores! Educar para compreender o mundo e saber discorrer livremente sobre o mundo, energizando a vida de cada um!) que pode estar uma das soluções para a crise que, no pós-covid, teremos de vencer? Da liberdade do espírito, de justiça social, de salários dignos, disso se faz a democracia.