Covid-19: taxa de letalidade duplicou em duas semanas. Acima dos 80 anos é superior a 34%

Morreram nove pessoas por hora, em média, na segunda e na terça-feira. Projecções de equipas do Instituto Superior Técnico e da Faculdade de Ciências de Lisboa apontam para quase mais 10 mil mortes até meados de Março.

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Paulo Pimenta

A realidade está a ultrapassar todas as projecções, todos os cenários traçados pelos especialistas. A mortalidade relacionada com covid-19 disparou em Janeiro e nos dois últimos dias suplantou mesmo as duas centenas – foram 218 e 219 óbitos nesta segunda e terça-feira. Morreram, em média, nove pessoas por hora em cada um destes dias. E as projecções para os próximos dois meses são preocupantes. Em meados de Março, esperam-se “entre 19.500 a 21.500 mortes” associadas a covid-19 e isto “se a situação se mantiver sem uma grande ruptura dos serviços de saúde”, calcula o professor e investigador no Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico (IST), Henrique Oliveira. “Será difícil reduzir estes números sem um confinamento a sério”, defende o investigador da equipa de acompanhamento de covid-19 do IST, que avisa que estas previsões poderão ser ultrapassadas, “e drasticamente, se a ruptura no Serviço Nacional de Saúde for continuada”.

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A realidade está a ultrapassar todas as projecções, todos os cenários traçados pelos especialistas. A mortalidade relacionada com covid-19 disparou em Janeiro e nos dois últimos dias suplantou mesmo as duas centenas – foram 218 e 219 óbitos nesta segunda e terça-feira. Morreram, em média, nove pessoas por hora em cada um destes dias. E as projecções para os próximos dois meses são preocupantes. Em meados de Março, esperam-se “entre 19.500 a 21.500 mortes” associadas a covid-19 e isto “se a situação se mantiver sem uma grande ruptura dos serviços de saúde”, calcula o professor e investigador no Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico (IST), Henrique Oliveira. “Será difícil reduzir estes números sem um confinamento a sério”, defende o investigador da equipa de acompanhamento de covid-19 do IST, que avisa que estas previsões poderão ser ultrapassadas, “e drasticamente, se a ruptura no Serviço Nacional de Saúde for continuada”.

Há outro indicador para o qual Henrique Oliveira olhou que expressa a gravidade da actual situação. Pelos seus cálculos, a taxa de letalidade (relação entre o total de mortes e o total de contágios) por covid-19 mais do que terá duplicado em apenas 14 dias. Acima dos 80 anos passou de “14,47%”, no dia 6 deste mês, para “34,3%”, nesta terça-feira, 19. E, em geral, incluindo todas as faixas etárias, a taxa de letalidade subiu de “2,19% para 4,13%”, na mesma média móvel a 14 dias, diz.

Para chegar a estes números – que se baseiam nos relatórios diários da Direcção-Geral da Saúde (DGS) – o investigador dividiu os óbitos ocorridos num dia específico pela incidência 14 dias antes e fez a média móvel nesse período. O PÚBLICO quis confirmar junto da DGS estes cálculos sobre a taxa de letalidade, mas não obteve resposta em tempo útil. A DGS tem adiantado a taxa de letalidade global no valor acumulado desde o início da pandemia, não médias móveis. 

Como pode a taxa de letalidade ter dado um salto destes em 14 dias? O fenómeno resulta de dois factores, afirma Henrique Oliveira. “O número de testes de diagnóstico não estará a acompanhar o crescimento dos casos, mas isto apenas explica 20% a 30% [deste resultado]. Os outros 70% ficarão a dever-se à saturação dos cuidados de saúde”, acredita. Os óbitos de segunda e terça-feira serão, aliás, já “um sintoma muito claro do colapso dos sistemas de saúde”, até porque, mantendo-se o crescimento sustentado das mortes de dias anteriores, “teríamos 173 e 179” nestes dois dias, observa o especialista, que é muito crítico das opções do Governo. “Os erros de decisão custaram ao país até hoje, com a abertura do Natal, 1600 mortos, a 20 de Janeiro, apenas a ponta do icebergue do que aí vem”, avisa.

Frio estará a ter impacto na mortalidade?

Pelas suas contas, manter a situação actual, sem “um verdadeiro confinamento” geral e “imaginando que a situação se mantém assim até à próxima segunda-feira, 25, passando no dia 26 a um confinamento real e severo com fecho de todas as escolas, trará um aumento acumulado global de quase 10 mil mortos em 16 de Março devido a atrasos de decisão desde o Natal”.

Apesar de “ser difícil atribuir totalmente as causas a um ou outro fenómeno, porque a sobreposição de efeitos não é linear”, Henrique Oliveira calcula que mais destes 3500 óbitos ocorrem “por acção directa dos contágios no Natal e derivados, 2000 a 2800 pelo não fecho das escolas e 4000 pelo atraso nas medidas de confinamento a sério, com um pré-confinamento falso [a que chama ‘postigo’ aberto], depois ligeiramente reforçado” e, “finalmente, geral – com escolas de todos os níveis fechadas [cenário hipotético de 26 de Janeiro]”. E estes são números “conservadores”, enfatiza. “Isto é como estar a ver um fogo a alastrar de forma catastrófica e não fazer nada. Não se pode combater uma pandemia ao retardador”, sustenta.

O elevado número de óbitos, que tem ultrapassado todas as projecções, também apanhou de surpresa os especialistas da equipa de Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que efectua a modelação da evolução da covid-19 desde o início da pandemia. “Estão a morrer mais pessoas do que era de esperar. Não sei por que é que isto está a acontecer. Não sei se são as características dos doentes, se são mais obesos, mais velhos. Não sei se é o frio, se é a diminuição da qualidade dos cuidados de saúde prestados. Deve ser uma combinação de factores”, pondera o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, que coordena esta equipa da Faculdade de Ciências e é um dos peritos que têm aconselhado o Governo nas reuniões do Infarmed.

A equipa de Carmo Gomes tinha projectado que o número de mortes rondasse os 200 na próxima semana e chegasse a 220 apenas na seguinte. E as projecções da mortalidade associada a covid para meados de Março não diferem muito das da equipa do IST. Segundo os modelos matemáticos utilizados, estimavam que os óbitos atingissem os 20 mil em meados de Março.

Carlos Antunes, que integra a equipa da Faculdade de Ciências, defende que este salto na mortalidade se ficará a dever a um conjunto de vários factores, desde logo “a saturação do SNS com a redução de camas livres para os doentes, o aumento da incidência [novos casos], o frio e as infecções concomitantes”. E avisa: “Numa situação de catástrofe e de guerra morre muito mais gente.” 

Também crítico das opções do Governo, Carlos Antunes defende: “Nunca devíamos ter deixado passar o número de novos casos diários acima dos 3 mil para acomodar as próximas vagas e as novas variantes. Devíamos ter reforçado as equipas que fazem os inquéritos epidemiológicos a seguir à segunda vaga. [Este número de novos casos] é como um furacão que não temos capacidade de controlar.” Já alteradas, as projecções apontam agora para um máximo diário de óbitos que pode chegar a 240 em Fevereiro, “mas é provável que isto seja ultrapassado”.

O número tão elevado de óbitos está a reflectir o impacto dos novos casos, e é expectável que as mortes se mantenham neste patamar durante alguns dias, antevê a presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologia, Elisabete Ramos. Este cenário já estava previsto, aliás, nas estimativas efectuadas pela equipa do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, que Elisabete Ramos integra. “Os próximos dias vão ser complicados”, diz, frisando que, mesmo com medidas mais restritivas, o impacto na mortalidade apenas será visível mais tarde.