Porquê ler os clássicos no confinamento?
Necessitamos das palavras para viver. Sem elas, a existência não passa de um vastíssimo silêncio destituído de significados. Não há confinamento quando se abre um livro.
A singularidade da Odisseia, segundo Italo Calvino, reside no facto de Ulisses ser mais próximo das pessoas comuns que dos heróis clássicos, cheios de virtudes militares e aristocráticas. É um protagonista que sofre às mãos da Fortuna, padece de solidão, sente saudade de casa, da esposa, do filho. Será o nosso olhar distinto do olhar de Ulisses quando contempla o poente? Quando imagina Ítaca, a pátria perdida, ao longe, além da linha do horizonte? Eis o tremendo poder dos clássicos: eles são mantas para os dias frios, não impedem o bafo gélido da morte mas levam algum calor aos corações carentes. Necessitamos das palavras para viver. Sem elas, a existência não passa de um vastíssimo silêncio destituído de significados. Por isso urge recuperar o tempo da leitura, o tempo domado pelas narrativas. Não podemos prosseguir neste ritmo alucinante, de voracidade por tudo e por todos, da “modernidade líquida”, como disse Zygmunt Bauman, ou do silêncio que incomoda a consciência, ilustrado pelas palavras do filósofo Gilles Lipovetsky.
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A singularidade da Odisseia, segundo Italo Calvino, reside no facto de Ulisses ser mais próximo das pessoas comuns que dos heróis clássicos, cheios de virtudes militares e aristocráticas. É um protagonista que sofre às mãos da Fortuna, padece de solidão, sente saudade de casa, da esposa, do filho. Será o nosso olhar distinto do olhar de Ulisses quando contempla o poente? Quando imagina Ítaca, a pátria perdida, ao longe, além da linha do horizonte? Eis o tremendo poder dos clássicos: eles são mantas para os dias frios, não impedem o bafo gélido da morte mas levam algum calor aos corações carentes. Necessitamos das palavras para viver. Sem elas, a existência não passa de um vastíssimo silêncio destituído de significados. Por isso urge recuperar o tempo da leitura, o tempo domado pelas narrativas. Não podemos prosseguir neste ritmo alucinante, de voracidade por tudo e por todos, da “modernidade líquida”, como disse Zygmunt Bauman, ou do silêncio que incomoda a consciência, ilustrado pelas palavras do filósofo Gilles Lipovetsky.
Ler é um ato de liberdade mas também de comunhão. Liberta-nos das amarras dos estereótipos, da realidade crua do mundo. Ao mesmo tempo, a leitura enche-nos o peito de compaixão pelos outros, a cola da civilização. Assim, comungamos das dores de parto do mundo e, mais importante, das dores daqueles que morrem nas pequenas mortes das desilusões, das traições, das injustiças. Podemos sofrer ao lado de Jean Valjean, condenado por roubar um pão e perseguido por esse ato de necessidade durante toda a vida, ou sentir a chama do inconformismo na leitura dos textos de Charles Dickens. Imaginar utopias com a Utopia de Thomas More, participar numa aventura maior do que a sombra na companhia de Dom Quixote, dar a volta ao mundo em oitenta dias, escoltado pela narrativa de Júlio Verne. Hemingway faz falta ao mundo contemporâneo, principalmente pelo papel de denunciar as injustiças. As suas páginas transportavam o olhar dos leitores para o âmago dos conflitos. Não era possível alegar indiferença nem desconhecimento. A Guerra e Paz de Tolstói não revela o verniz que é a civilização, despedaçada pelos instintos indomáveis da natureza humana? Os clássicos são livros abertos para as profundezas da alma. Não é possível fecha-los depois de abertos.
O Memorial do Convento é um memorial aos pobres, aos trabalhadores, aos injustiçados, aos miseráveis mas também aos sonhadores e, sobretudo, à resiliência das mulheres. Memória de Elefante, da autoria de António Lobo Antunes, transporta-nos para uma guerra em África que se comuta numa batalha contínua entre o homem e os fantasmas, conflito que perpetua a luta primordial do crepúsculo com a bruma. Afinal, somos pedaços de luz cercados pelas sombras. O humor de Mark Twain representa uma vitória pírrica sobre as hostes da morte. Há passagens em Dom Quixote que invertem a ordem do mundo e a prosa de Camilo Castelo Branco deixava o adversário mais abalado com os golpes das palavras do que com os socos que o escritor gostava de distribuir na baixa portuense. E Dante? Um homem que desce aos infernos para revisitar o rosto do amor platónico, esse Orfeu italiano que fez da sua Eurídice uma Beatrice imortal. Adoro uma frase de Teixeira de Pascoaes, escrita na obra O Pobre Tolo: “Os deuses não morrem, adormecem.” Eis o derradeiro sonho humano: que a morte seja um sono com possibilidade de despertar. Quer o confinamento se prolongue por cem dias ou por Cem Anos de Solidão teremos sempre os livros e as palavras. É assim que se tece os fios da imortalidade, com releituras e leituras até que as histórias se tornem tão familiares como o rosto surpreendido pelo reflexo ao espelho no livro Aparição, de Vergílio Ferreira.
O Imperador Tibério tinha o hábito de embaraçar os senadores romanos com perguntas complexas. Certo dia, perguntou-lhes qual a música cantada pelas sereias a Ulisses. Não souberam responder. Ninguém sabe o que cantavam as sereias ao herói da Odisseia. É esse o motivo para ler os clássicos, ou seja, em cada resposta (em cada página) existe um novo trilho repleto de perguntas. Não há confinamento quando se abre um livro.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico