Uníssono: quantas almas são lembradas em 300 quilómetros de peregrinação, nos Açores?

O que deixou a Subversão de Vila Franca do Campo aos açorianos além do enorme rastro de destruição? O terramoto de 22 de Outubro de 1522 assolou a ilha de São Miguel e moldou a fé das primeiras gerações micaelenses. Com origem nesse fenómeno, as Romarias Quaresmais são ainda hoje uma das maiores manifestações da fé cristã nos Açores. O produto da meditação desses oito dias de caminho ultrapassa as paredes da Igreja e dá aos açorianos um poderoso compasso de silêncio nas suas vidas, levando-os a uma profunda introspecção.

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A uma semana do grande dia, ainda se circulava com normalidade nas ruas de Ponta Garça, em São Miguel, nos Açores. Aliás, em toda a ilha o alarme ainda soava distante, como se de um mal inofensivo e passageiro se tratasse. Os terços, os lenços, os sacos e os bordões repousavam já com entusiasmo nas costas da cadeira do quarto de cada um deles. Estava tudo preparado e os corações já batiam ao ritmo do desejo de cumprir mais uma romaria. As refeições estavam planeadas, as dormidas acertadas em cada uma das freguesias de pernoita, e em Água Retorta os alguidares estavam prontos para demolhar os pés batidos de uma semana de estrada.

Na memória projectada pela boca do povo ainda correm relatos da última pandemia, que também atingiu os Açores. A gripe espanhola matou, entre 1918 e 1920, mais de 60 mil portugueses e superou as 50 milhões de mortes em todo o mundo. Estes estafetas da memória popular recordam-nos a bruma vivida nesses dias e diz-se que terá sido a última vez que as romarias não foram para a estrada, numa tentativa de evitar a propagação do vírus. Passados 100 anos, um novo inimigo invisível volta à região. Depois de em 2020 se terem cancelado as romarias pela primeira vez no espaço de um século, os mestres dos vários ranchos da ilha de São Miguel deram, uma vez mais este ano, ordem para que os romeiros fiquem em casa, dando a toda a comunidade o melhor exemplo no combate à propagação do novo coronavírus. Ponta Garça é actualmente uma das freguesias mais afectadas na ilha de São Miguel, que, de dia para dia, tem visto o número de casos aumentar de forma galopante.

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Pepe Brix

Uníssono, a reportagem fotográfica que se segue, é o resultado do acompanhamento da última romaria realizada pelos irmãos de Ponta Garça, entre 23 e 30 de Março de 2019. Depois de vestir a pele de romeiro e percorrer os 300 quilómetros de estrada com o rancho, este artigo é a minha homenagem a cada um deles e o meu sentido sinal de respeito pela decisão tomada mais este ano.

“Vou caminhando e cantando em uníssono”

Em estranha sincronia, humano e arquipélago faziam história, cada um manifestando o poder das suas distintas vontades. Enquanto os portugueses iam tacteando as suas primeiras décadas nas mais orientais ilhas açorianas, lutando pela expansão do território, a fúria tectónica das ilhas ia, de tempos em tempos, subvertendo o sonho dos recém-chegados, povoando-o de medo e coragem, simultaneamente. Se no mesmo paralelo de tempo a vida era áspera nas terras do grande continente, de onde saíam confortavelmente as ordens do rei, na ilha de São Miguel o povo sucumbia à bravura das entranhas desta formação vulcânica, apertando com cada vez mais força as mãos junto ao peito, na hora de pedir a Deus para que a terra parasse de tremer.

Saudades da Terra, as que doem quando se lê, e que ao espelhar a exuberância de uma terra fecunda nos afoga a tranquilidade quando ao descrever o cenário apocalíptico instalado na costa sul da ilha, nos conta do desespero que abateu sobre aqueles que há tão pouco a tinham vindo povoar. O desespero causado por aquela que ficou conhecida como a Subversão de Vila Franca do Campo, o esmagador sismo de 1522 que soterrou a então capital açoriana, matando mais de três mil pessoas.

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Pepe Brix

Sem necessidade de ler nas entrelinhas, as referências de Gaspar Frutuoso ao quotidiano pós-apocalíptico da ilha mostram a capacidade de superação e a força que se ergueu no cerne do povo açoriano, imprimindo-lhe para os anos futuros um tom de modéstia e de contemplação do poder de tudo o que nos rodeia e nos transforma.

Quanto do intelecto tem mão a hierarquia católica, que vai empurrando a intenção de todos os fenómenos para as mãos Deus, é natural que ante Deus o povo se curve para pedir a sua súplica, eliminando da equação o acaso ou a evolução natural da matéria. Desse avassalador fenómeno que tomou as rédeas da fé açoriana nasceu a romaria quaresmal que ainda hoje acontece, um pouco por todas as freguesias da ilha, e que com o correr do tempo foi ganhando novos contornos, sem nunca se afastarem da sua essência.

Os que me conhecem melhor questionaram a minha vontade de descobrir uma caminhada que é tão devota a um Deus de tantas palavras. A verdade é que todas as experiências que tentam o universo espiritual pelas quais passei, tenham sido na Índia, no Irão ou em Ponta Garça, mostraram-me que para lá do consciente da fé religiosa está um outro poder latente em cada indivíduo. Latente, quem sabe, por inibição do burburinho dessa mítica fé.

Um dos momentos mais marcantes da minha vida foi ver o meu pai perder a maior batalha da sua vida, enquanto lutava contra um cancro do pulmão. Embora o momento não tenha descoberto em mim nenhum tipo de revelação religiosa, achei-me encostado à espiritualidade do hinduísmo quando estive uns meses na Índia a fotografar o povo que a conduz e a reflectir sobre os dons e precisões que nos tomam a vida. Sem amor maior senão o que trouxe ao povo indiano e às entrelinhas do silêncio a que se submetem todos os dias, o produto dos instrumentos de meditação a que cada indivíduo recorre, e da entropia que gira em seu torno, é hoje a cofragem para um empilhamento conexo de todas as camadas que resultam dos eventos que brotam na minha vida. E o que são as romarias que acontecem em São Miguel senão um interregno no tempo das coisas vãs, das maratonas cegas pelas organizações que nos empregam, das exigências do mundo virtual, do cavar do fosso que nos separa dos mais próximos e do rancor caído de inseguranças que nos tomaram sem a nossa consciência?

Um dia, estava sentado na soleira de uma porta numa rua qualquer de Ponta Delgada e vi passar um rancho. Fui esmagado pela força do cântico que trouxeram ao silêncio daquela rua e pelo que me disseram sem nunca voltarem os olhos ou a sua atenção para mim: “Vou caminhando e cantando em uníssono com os meus irmãos, e em uníssono vou com os meus pensamentos.” Nunca saberei de que freguesia eram, e tão pouco importa, pois a mensagem vinha sem tempo ou espaço, e tudo o que podiam fazer por mim já tinham feito. Uns anos mais tarde, na véspera da saída do rancho de Ponta Garça, estou sentado num carro, à boleia do irmão João Filipe e do irmão Marco, a caminho da freguesia. Essa sede de parar tudo para regressar a tudo o que importa foi o maior combustível para a decisão de vir ter com os irmãos de Ponta Garça e fazer esta jornada com eles. Vendo, para lá do horizonte da sua fé cristã, a sapiência que lhes chega quando em uníssono cantam ou em silêncio andam.

A romaria despertou com um novo mestre. Como em qualquer outro grupo, uma romaria também precisa de um mestre. Um elemento que tenha o reconhecimento de todos os irmãos, e que esteja disposto a assumir a responsabilidade de dar rumo ao rancho. Antes, durante e depois da romaria.

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José Adelino é o guia Pepe Brix
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E é também o irmão mais velho do rancho Pepe Brix

O núcleo duro do rancho pouco varia de ano para ano. Entre um ou outro irmão que, por razões pessoais, tem que adiar a sua participação, as caras repetem-se de ano para ano. Muito menos variam ainda os irmãos que acartam funções específicas no grupo, como é o caso do irmão mestre. Vinte e cinco anos foram precisos até que a função fosse finalmente rendida. Em 2019, o irmão Marco levou pela primeira vez o rancho para a estrada, guiando a direcção das suas orações e o fundo das suas reflexões.

José Adelino é o guia e é também o irmão mais velho do rancho. Com 70 anos, e umas dezenas de romarias no corpo, José vai aos poucos passando a sua sabedoria a Xavier, que é já o segundo guia do grupo. É função dos guias conduzir o rancho pelos caminhos da São Miguel, escolher os locais onde se fazem as paragens para descanso e, mais importante, marcar o passo e impor o ritmo ao rancho.

O procurador de almas é o elemento que fecha o rancho. João Costa, conhecido entre todos por Feiteira, é o último romeiro a passar e é ele o responsável pela ligação do rancho ao povo que, com grande respeito e visivelmente comovido, sai à rua para ver passar a romaria. Ouvindo as “intenções” dos devotos, os irmãos tratarão de rezar em uníssono pelas mesmas durante o seu caminho, enquanto a pessoa que partilhou as suas preces rezará uma Avé Maria por cada um dos irmãos.

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João Costa, o Procurador d'Almas Pepe Brix

“Arrumar romeiros”

Não só de preces para transformação do presente vivem as orações da romaria. A importância de tudo o que está para trás, dos fenómenos de transformação e da sabedoria dos irmãos que já partiram, é também um pilar importante na essência do romeiro. Para isso, no centro do grupo, segue o Lembrador d’Almas. Um guardião da memória, que à passagem pelos lugares que aguçam a saudade do irmão que partiu, grita uma saudação em lembrança da sua alma, perpetuando a sua presença no mundo dos vivos.

“Arrumar romeiros”, expressão utilizada na gíria, é uma manobra cada vez mais difícil. Apesar da tendência de haver cada vez menos pessoas abertas a acolher os romeiros em suas casas durante toda a semana, apenas duas noites são passadas em grupo em edifícios polivalentes das freguesias da Achada e de Água Retorta. Todos os dias, quando cai a noite e é dado como findo o percurso do dia, o responsável pelo acolhimento dos romeiros daquela freguesia apresenta-se na igreja com a lista de nomes das pessoas que abriram as portas de sua casa, para fazer a distribuição dos romeiros por essas casas.

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Cada vez menos pessoas acolhem os romeiros nas suas casas Pepe Brix
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Mais de 100 igrejas e ermidas são visitadas durante a romaria. Fechadas ou abertas, à porta de todas elas é feita uma salva à Virgem Maria. Quando é o caso, é também feita uma oração de adoração ao Santíssimo Sacramento. A cargo do irmão Padre João Neves está a celebração das missas diárias que vão acontecendo ao longo da semana. O cântico de entrada é sempre feito quando os irmãos têm intenção de entrar e orar no templo. Esgotados, apoiam o corpo pesado nos bordões e em uníssono cantam para pedir a licença de sua entrada.

A Ordem das Damas Pobres, como era conhecida originalmente, é um dos muitos templos de passagem obrigatória nestas Romarias Quaresmais. Em clausura no mosteiro de Nossa Senhora das Mercês, nas Calhetas de Rabo de Peixe, as Irmãs da Ordem das Clarissas recebem todos os anos milhares de romeiros como sinal de apreço às suas feituras e de reconhecimento da sua importância.

Os despenseiros da romaria são, além do Procurador d’Almas, os únicos irmãos que estabelecem contacto frequente com o mundo fora da bolha da peregrinação. Sempre que algo é necessário, sejam bens alimentares ou medicamentos, Marco, Daniel e Filipe (da esquerda para a direita) são os responsáveis por abastecer o grupo.

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Depois de perder um pulmão num acidente de trabalho, que o deixou pendurado entre a vida e a morte, num tubo de ferro que lhe perfurou o peito, Carlos foi obrigado a parar com as romarias durante dois anos. Embora ainda muito debilitado, em 2015 foi tomado pela vontade de voltar, e contra a vontade de todos fê-lo a cavalo. Nos anos que se seguiram, a vida empurrou-o para para os Estados Unidos da América, onde esteve emigrado durante três anos. Quando regressou em 2019, não havia outra coisa que quisesse tanto cumprir senão juntar-se aos seus irmãos de Ponta Garça e retomar as romarias que começou a fazer aos 8 anos. A sua débil condição médica veio espelhada na sua cara em cada um destes oito dias de caminho. Seguindo sempre a um ritmo mais lento, para não sucumbir à falta de ar, Carlos ia ficando para trás e esteve várias vezes à beira da desistência. O companheirismo de todos os irmãos e a sólida fé que carrega em si fizeram-no superar todas as dores e agonias, e no dia 30 de Março entrou na Igreja de Ponta Garça para dar como encerrada mais uma peregrinação.

Diante da mais bizarra casa mortuária dos Açores está o sepulcrário de Ponta Garça, que guarda a memória dos familiares que já partiram e que foram tantas vezes lembrados durante a caminhada. Antes da chegada à igreja, que está cheia até à porta para receber a romaria e celebrar o seu encerramento, esta última paragem é de todas a mais comovente. Aqui, juntam-se o conforto da superação do cansaço, ao confronto com as feridas revistadas durante a caminhada. Até os irmãos mais novos, que à saída da romaria e durante os primeiros dias mostravam alguma rebeldia e desligamento, dão sentido da caminhada, deixam claro aqui que também eles cumpriram o grande propósito e que há algo que vão levar para os dias que virão depois.

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