“Nunca deixes que a gaguez defina quem és”
Mal compreendida e envolta em mitos e preconceitos, a gaguez é uma condição que afecta cerca de 100 mil portugueses.
“Nunca deixes que a gaguez defina quem és.” Em criança, Joe Biden mal conseguia pronunciar o seu nome sem gaguejar. No dia 20 de Janeiro toma posse como o 46.º Presidente dos Estados Unidos, discursando para milhões de pessoas. Mal compreendida e envolta em mitos e preconceitos, a gaguez é uma condição que afecta cerca de 100 mil portugueses
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“Nunca deixes que a gaguez defina quem és.” Em criança, Joe Biden mal conseguia pronunciar o seu nome sem gaguejar. No dia 20 de Janeiro toma posse como o 46.º Presidente dos Estados Unidos, discursando para milhões de pessoas. Mal compreendida e envolta em mitos e preconceitos, a gaguez é uma condição que afecta cerca de 100 mil portugueses
O que é a gaguez?
A gaguez é a perturbação da fluência mais frequente e manifesta-se maioritariamente entre os dois e os três anos e meio, podendo, no entanto, surgir até ao início da adolescência. É uma condição maioritariamente de origem genética (é muito comum ter um familiar que também gagueja), que afecta a forma como o cérebro processa a fala, e com uma incidência quatro vezes superior nos indivíduos do sexo masculino. A prevalência da gaguez na idade adulta é de aproximadamente 1%, o que corresponde a 70 milhões de pessoas.
A gaguez é caracterizada por interrupções involuntárias do discurso consideradas atípicas, que se dividem em prolongamentos (o som arrasta-se paaaaaa-ra lá do que seria habitual), repetições (po-po-po-porta ou p-p-p-p-p-porta) e bloqueios (em que as palavras parecem teimar em não sair). Estas interrupções podem ser acompanhadas por movimentos corporais, em resposta à sensação de perda de controlo experienciada durante o momento de gaguez.
Variabilidade: a característica incompreendida
As interrupções são involuntárias e variáveis na sua forma e duração, contrastando de indivíduo para indivíduo e de situação para situação, podendo ter muitas oscilações até durante o mesmo dia.
Esta variabilidade deixa familiares, amigos, professores ou colegas, confusos, dando origem a diferentes justificações para o facto de uma pessoa poder gaguejar muito numa situação e quase nada noutra. Por exemplo, durante a campanha para as últimas eleições legislativas, a deputada Joacine Katar Moreira foi acusada de manipular a gaguez em seu benefício, após ter sido tornado público um vídeo onde falava de forma mais fluente. A Sociedade Portuguesa de Terapia da Fala procurou desconstruir esta teoria emitindo um esclarecimento público. Agora, o leitor já sabe que se tratava da variabilidade da gaguez e que as acusações não tinham qualquer fundamento.
O meu filho está a gaguejar. E agora?
Quando uma criança começa a gaguejar é natural que os pais manifestem preocupação. Como descrito, as características complexas da gaguez alimentam mitos e teorias tão díspares quanto disparatadas. Evite fóruns opinativos e recorra a informação validada por especialistas na área da fluência.
1. As disfluências ditas normais
Em primeiro lugar, é importante distinguir o que são os comportamentos típicos de gaguez e o que são disfluências típicas e que podem surgir durante o desenvolvimento da criança em idade pré-escolar. Esta triagem ajudará a decidir se deve ou não procurar terapia da fala especializada.
As disfluências fazem parte do processo de desenvolvimento da linguagem e da comunicação. Todos nós, por vezes, fazemos pausas, hesitações e interjeições enquanto pensamos no que queremos dizer (ex.: “humm”; “ahh”), ou revisões, repetições de frases ou de excertos de frases, porque decidimos organizar o discurso de outra forma, ou utilizar outras palavras (ex.: “Eu queria… eu gostava que...”). No entanto, estas disfluências são consideradas disfluências típicas ou normais, uma vez que, podem mesmo ser necessárias e assumem uma função: no caso de uma criança, permite-lhe ter mais tempo para organizar e formular o que pretende dizer. Mas, acima de tudo, são típicas porque não envolvem a sensação de perda de controlo.
2. As disfluências típicas da gaguez
Seguidamente, é crucial compreender e definir o que são disfluências atípicas ou disfluências típicas de gaguez. As disfluências consideradas típicas da gaguez podem surgir de forma repentina ou gradual e dizem respeito às disfluências acima descritas: bloqueios, repetições e prolongamentos. Se identificou os sinais de alerta, procure ajuda.
Se este tipo de disfluências estiver presente no discurso da criança, podemos afirmar que está a gaguejar. Tal não significa que a gaguez vá perdurar: cerca de 5% das crianças passa por um período de gaguez durante o seu desenvolvimento e só 1% dos casos permanecerá. No entanto, não sendo possível distinguir os casos em que a gaguez se tornará persistente, é aconselhável recorrer a um terapeuta da fala especializado em fluência.
O que sente uma criança (ou um adulto) quando gagueja?
Imagine que está a aprender a conduzir e que o seu carro vira abruptamente para a direita, sem qualquer comando da sua parte. Agora, suponha que isto acontece várias vezes durante o dia e sempre de forma inesperada, sem qualquer padrão ou motivo aparente. Como é que passaria a abordar a sua condução? Provavelmente tentaria encontrar estratégias, como agarrar o volante com mais força; incliná-lo para a esquerda; talvez começasse a ficar mais tenso sempre que pusesse a chave na ignição; finalmente, talvez deixasse de querer fazê-lo de uma vez por todas e optasse por caminhar. Substitua conduzir por falar e ficará com uma noção do que o seu filho (ou um adulto) que gagueja estará a sentir.
A intervenção precoce melhora a fluência e o bem-estar da criança
Além do tipo de disfluências observado, também a sua qualidade deve ser tida em conta. À medida que a sua frequência aumenta, assim como a sensação de perda de controlo e a de que não é capaz de dizer aquilo que pretende, quando e como idealizou, a criança poderá começar a reagir aos momentos de gaguez.
1. Tensão física e frustração
É possível que comece a ser observado um aumento da tensão física durante as disfluências, assim como um aumento da duração dos momentos de gaguez, acompanhados de movimentos faciais e/ou corporais (ex.: fechar os olhos; cerrar os punhos; bater o pé).
Estas reacções podem aparecer muito rapidamente e logo após o surgimento da gaguez e, mesmo as crianças muito pequenas, que podem não saber o que é a gaguez, começam a demonstrar sinais de frustração e medo pela consciência de que algo de errado está a acontecer com a sua fala. Os pais poderão começar a notar alterações comportamentais associadas ao acto de comunicar, como a utilização de uma fala silabada, de “muletas” para iniciar o discurso, menor participação em momentos de conversação, até à preferência pelo uso gestos ou de desenhos para comunicar.
2. Experiências negativas e sofrimento associado
As experiências negativas associadas ao acto de comunicar podem ter efeitos adversos e, infelizmente, persistentes na auto-estima de um indivíduo, que poderá sentir que a gaguez diminui a sua capacidade de fazer amizades ou de realizar determinadas actividades sociais ou profissionais. No caso das crianças, a intervenção precoce evita o acumular destas experiências negativas, demonstrando, desde cedo, que a gaguez jamais será impeditiva de atingirem os seus objectivos.
Vale a pena assistir à intervenção de Joe Biden, na CNN (em inglês), no caminho para as eleições presidenciais, em que descreve a luta travada com a gaguez durante a infância e a adolescência: “Nunca deixes que a gaguez defina quem és.”
Como demonstra a curta-metragem de três minutos, “Cappuccino” (também em inglês), da autoria de Luke Collins, as actividades mais simples podem assumir uma dificuldade extraordinária para alguém que gagueja. De notar, que a terapia da fala faz também toda a diferença na vida de um adulto que gagueja, aumentando a eficácia e o prazer de comunicar e diminuindo o impacto negativo que a gaguez possa ter nas suas actividades diárias.
3. Famosos que gaguejam
Se em algum momento o seu filho (um amigo ou colega), duvidar que a gaguez não tem de limitar as suas escolhas pessoais e profissionais, mostre-lhe que, além do Presidente dos Estados Unidos, são inúmeros os casos de pessoas que gaguejam extremamente bem sucedidas no universo da política, cinema ou comunicação, como por exemplo: Elvis Presley, Emily Blunt, Marilyn Monroe, Nicole Kidman, James Earl Jones, Ed Sheeran, Bruce Willis ou Kendrick Lamar.
Como lidar com uma criança que gagueja?
Não existe evidência científica que demonstre que o estilo de interacção dos pais de crianças que gaguejam difere de alguma forma do estilo de interacção dos pais de crianças que não gaguejam. No entanto, existem comportamentos e reacções que as famílias de uma criança que gagueja podem ajustar para facilitar a sua fluência e auto-estima:
- Evite interromper a criança e, principalmente, não termine as suas frases. Eduque as pessoas à sua volta para fazerem o mesmo.
- Não se irrite com o tempo que a criança demora a falar. Acredite, é muito mais frustrante para ela.
- Reserve um momento tranquilo por dia para comunicar com o seu filho: 15 minutos farão toda a diferença.
- Se sentir que a criança está agitada (por exemplo, num período de mudança de rotinas, como as férias), reserve tempo a dois para actividades mais calmas, como desenhar ou fazer um puzzle.
- Aproveite momentos familiares, como as refeições, para estabelecer diálogo com a criança, substituindo perguntas por comentários sempre que possível.
- Evite fazer comentários como “fala devagar” ou “tem calma”. Experimente, antes, ser o modelo comunicativo da criança: fale pausadamente e deixe os outros expressarem-se.
Devo falar com o meu filho sobre a gaguez?
Sim. Abordar o tema de uma forma que demonstre apoio e compreensão pode diminuir os seus medos e reacções, assim como ajudá-lo a lidar melhor com os momentos de gaguez. Dizer à criança que está tudo bem mesmo que ela gagueje, vai fazê-la sentir-se mais livre para comunicar, e, genericamente, mais feliz e confiante.
Existe uma idade certa para fazer terapia para a gaguez?
A intervenção precoce permite resultados mais rápidos. No entanto, pessoas de todas as idades obtêm um impacto profundo na sua qualidade de vida, que se traduz na melhoria da fluência, através da redução dos momentos de gaguez, e numa crescente confiança e realização pessoal, resultante da progressiva eliminação dos pensamentos e emoções negativas associados.
A comunicação não é uma escolha, é uma característica intrínseca e inescapável da vida em sociedade, omnipresente no nosso dia-a-dia. A gaguez não deve limitar escolhas pessoais e profissionais, nem impedir um indivíduo de atingir todo o seu potencial. Se sente que, de alguma forma, isso está a acontecer, procure ajuda: não está, nem deve estar, sozinho.