“É a loucura total” nos hospitais. Os médicos estão “exaustos e em sofrimento ético”
Nas urgências, atende-se apenas quem tem pior aspecto, nos cuidados intensivos mudam-se critérios de internamento, que é um eufemismo para a recusa de doentes. Os profissionais desidratam-se e desesperam. Testemunhos de médicos e enfermeiros na “linha da frente” do combate à covid-19.
Numa altura em que as mortes por covid-19 atingem novos máximos, e em que os internamentos hospitalares aumentaram 84% desde o início do ano, superando já os cinco mil doentes, cada vez mais hospitais dão sinais de ruptura. Em muitas urgências, pratica-se “uma medicina de catástrofe”, com médicos e enfermeiros exaustos, desesperados e “em sofrimento ético” por não conseguirem chegar a todos os doentes. Nos cuidados intensivos, a ruptura vive-se “em câmara lenta” e mudam-se os critérios de admissibilidade dos doentes, por falta de camas. O PÚBLICO fez uma ronda pelos profissionais que, a partir dos hospitais, dão conta do desespero dos que estão na linha da frente do combate à pandemia. E todos lamentam a ausência de medidas mais duras, para manter as pessoas em casa, porque neste momento, como diz o director do serviço de pneumologia do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, Carlos Robalo Cordeiro, a prioridade devia ser “salvar vidas e não salvar eleições”.
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Numa altura em que as mortes por covid-19 atingem novos máximos, e em que os internamentos hospitalares aumentaram 84% desde o início do ano, superando já os cinco mil doentes, cada vez mais hospitais dão sinais de ruptura. Em muitas urgências, pratica-se “uma medicina de catástrofe”, com médicos e enfermeiros exaustos, desesperados e “em sofrimento ético” por não conseguirem chegar a todos os doentes. Nos cuidados intensivos, a ruptura vive-se “em câmara lenta” e mudam-se os critérios de admissibilidade dos doentes, por falta de camas. O PÚBLICO fez uma ronda pelos profissionais que, a partir dos hospitais, dão conta do desespero dos que estão na linha da frente do combate à pandemia. E todos lamentam a ausência de medidas mais duras, para manter as pessoas em casa, porque neste momento, como diz o director do serviço de pneumologia do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, Carlos Robalo Cordeiro, a prioridade devia ser “salvar vidas e não salvar eleições”.
Carlos Meneses Oliveira, médico intensivista no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures
“Estamos a recusar doentes”
“Um médico está totalmente proibido de chorar”, lembra o médico Carlos Meneses Oliveira. Mas muitos têm quebrado esta regra, a acreditar no relato deste intensivista no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures. “É difícil manter a racionalidade numas urgências em que se pratica uma medicina de catástrofe. Os profissionais ficam devastados quando sabem que, se tivessem chegado meia hora mais cedo, o desfecho daquele doente teria sido diferente”, desculpa o médico, dizendo que nas urgências do Beatriz Ângelo, onde durante o fim-de-semana se acumularam doentes ventilados invasivamente por falta de lugar na Unidade de Cuidados Intensivos, é agora normal haver um médico e dois internos para meia centena de doentes.
“Os médicos estão confrontados com mais doentes do que aqueles que conseguem tratar e acabam por escolher tratar primeiro os que aparentam estar pior”, descreve, consciente de que, no que toca ao coronavírus, “o aspecto engana”: “Aos 35 anos, um doente infectado só se sente mal quando já está num estado gravíssimo ou em pré-colapso. Foi isso que me aconteceu no fim-de-semana com uma doente.”
Com os profissionais “exaustos, devastados por estarem conscientes de que não estão a prestar os cuidados devidos, a desidratarem-se e a ficarem infectados porque têm uma porta aberta para a rua e nem sempre conseguem cumprir o protocolo de segurança”, a qualidade dos cuidados “tem vindo a deteriorar-se”. “É uma medicina de catástrofe aquela que se pratica nas urgências. Aliás, a letalidade está a subir e os doentes não são assim tão diferentes”, sublinha, depois de muitas horas a tentar convencer os colegas mais novos e menos experientes de que não falharam, “fizeram o que podiam”.
Com o caos instalado nas urgências, e sem hipóteses de encaminhar doentes para outros hospitais, os cuidados nas unidades de intensivos andam também “a tactear os limites”. “Não lhe vou dizer que recusamos doentes, como se faz na Alemanha ou na Holanda, porque em Portugal recorre-se a um eufemismo que nos leva a dizer que mudámos os critérios de internamento, mas na verdade, sim, estamos a recusar doentes que em Março não recusávamos, dizendo aos colegas que o doente ainda não está suficientemente mal para vir para o nosso serviço”.
Por causa da pressão, a UCI do Beatriz Ângelo aumentou agora para as 24 camas (mais duas “camas-tampão” para doentes que ainda não se sabe se estão ou não infectados), mas os enfermeiros escasseiam. “Por sermos um hospital que funciona com uma parceria público-privada, não podemos reter os enfermeiros. Muitos emigraram e não há hipótese de os multiplicar, sendo que os enfermeiros novos e de outras especialidades que vão chegando não têm a mesma preparação”, descreve, para concluir que, ao contrário do que se passa nas urgências, onde já se pratica uma medicina de catástrofe, nos cuidados intensivos “vive-se uma ruptura em câmara lenta”.
“Em vez de uma UCI, posso ter três a funcionar, mas, se na terceira não tiver um ecocardiógrafo e enfermeiros especializados, a qualidade dos serviços prestados ao doente deteriora-se”, exemplifica, lamentando também a inexistência de material como as viseiras ventiladas. “São viseiras que mantêm o ar filtrado, a temperatura e a transparência e são importantes nomeadamente para os profissionais que usam óculos e que, muitas vezes, em vez de demorarem 30 segundos a ventilar um doente, demoram um minuto e meio.”
Patrícia Pacheco, directora do serviço de infecciologia do Amadora-Sintra
“O sistema já entrou em ruptura há muito tempo”
“Os hospitais sofreram uma reviravolta tremenda no seu funcionamento e isso reflecte-se na qualidade dos cuidados prestados”, avisa Patrícia Pacheco, directora do serviço de infecciologia no Hospital Amadora-Sintra, para quem “é muito claro que o sistema já entrou em ruptura há muito tempo”, obrigando os profissionais de saúde “a viver situações inimagináveis”.
“Tudo isto era previsível, esta hecatombe foi anunciada, mas os responsáveis preferiram o pensamento mágico de que não ia acontecer”, revolta-se esta médica, para explicar que, no hospital em que trabalha, existem agora sete enfermarias (cerca de 210 camas) dedicadas a doentes com covid-19, sem contar com os que estão nos cuidados intensivos ou nas áreas dedicadas para doentes respiratórios (ADR) das urgências.
No actual cenário, e sem capacidade de “drenar” doentes para outras instituições, o hospital convocou profissionais de variadíssimos serviços para o atendimento de doentes com covid-19. “As férias foram suspensas, todos os médicos que estavam em formação fora do hospital viram suspensos os seus estágios, e até os psiquiatras e os cirurgiões maxilo-faciais, por exemplo, estão ‘ao balcão’ a atender doentes. Claro que demoram muito mais tempo e os cuidados aos doentes ressentem-se disso”, descreve a especialista.
Dizendo que “um confinamento severo é imprescindível”, Patrícia Pacheco critica ainda o facto de não haver no momento qualquer controlo das cadeias de transmissão. “Esse controlo não está a ser feito há muito tempo, é ridículo que venha agora a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo fazer um concurso para rastreadores”, critica, considerando importante que “todos os contactos de risco sejam testados”, em vez de, como actualmente, “se mandarem turmas inteiras para casa sem testar os miúdos todos”.
Face ao caos instalado, a médica junta-se ao coro de vozes dos que defendem o encerramento das escolas acima dos 12 anos, dada a incapacidade de os hospitais atenderem todos os doentes se a curva de contágios se mantiver acima dos dez mil novos casos diários. “Continua a faltar uma resposta coordenada a nível nacional e falta maximizar tudo o que é capacidade instalada no sector privado, social e militar”, apela, reclamando a necessidade de “um pensamento macro” sob pena de os hospitais continuarem a “desestruturar-se” pela pressão de terem de arrancar camas dentro da sua estrutura pressionados pelo aumento dos doentes.
Mário André Macedo, enfermeiro nas urgências pediátricas do Amadora-Sintra
“Os hospitais estão desesperados por pessoal”
Ao telemóvel de Mário André Macedo, enfermeiro na urgência pediátrica do Amadora-Sintra, não param de chegar convites de outros hospitais para ir trabalhar em regime de comissão de serviço. E se no início da pandemia pagavam entre sete e oito euros por cada hora de trabalho, os preços agora subiram para os 12 ou 13 euros/hora. “Os hospitais estão desesperados por pessoal. Mesmo que houvesse o dobro dos enfermeiros, o trabalho não faltaria”, declara este profissional que, por trabalhar “numa bolha” relativamente a salvo da covid-19, tem vindo a ser recrutado para ajudar noutros serviços. “Amanhã [terça-feira], por exemplo, vou estar todo o dia a vacinar profissionais de saúde contra a covid-19.”
Por causa do fluxo ininterrupto na admissão de doentes infectados pelo novo coronavírus, e porque os hospitais das redondezas também já esgotaram a capacidade de acolher novos doentes, as urgências do Hospital de Amadora-Sintra “já não são só urgências, são urgências com internamento”, segundo este enfermeiro. “A situação está muito complicada, com imensas ambulâncias paradas à porta, e a tendência é para as coisas piorarem”, acrescenta Mário André Macedo.
“Pedem-nos para fazermos turnos extras, os profissionais dos diferentes serviços estão a ser mobilizados para ‘o atendimento de covid’ e a capacidade esgota-se até porque os hospitais de campanha não se fazem sem profissionais, que estão exaustos e a maioria deles com férias do ano passado por gozar”, descreve, reclamando “medidas assertivas e corajosas” por parte do Governo, sob pena de o sistema entrar em colapso.
Carlos Robalo Cordeiro, director do serviço de pneumologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
“É a loucura total. E é impossível de manter”
“Os profissionais de saúde estão rebentados, exaustos, infectados e desesperados com o sofrimento ético por causa dos critérios de escolha para atribuir uma vaga nos cuidados intensivos. Já não sei como solicitar aos médicos do meu serviço para darem apoio a mais uma enfermaria ou a fazer mais uma urgência”, desabafa o director do serviço de pneumologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Carlos Robalo Cordeiro, numa altura em que, segundo diz, um em cada três doentes internados naquele centro hospitalar são infectados com covid-19.
Contas feitas, o CHUC somava esta segunda-feira 346 doentes com covid-19, espalhados por 12 enfermarias, cuja abertura implicou que várias especialidades médicas, como ginecologia, dermatologia, otorrino e cirurgia vascular, entre outros, fechassem os internamentos. “O ambiente que se vive nos hospitais é de loucura total. E é impossível de manter”, qualifica o pneumologista, segundo o qual “milhares de doentes que precisavam de ser vistos em ambiente hospitalar não estão a ser atendidos”. “Pelo menos 20% dos doentes com patologia oncológica ficaram sem diagnóstico atempado e perderam o timing para serem submetidos a tratamento. Era bom que todos se lembrassem que não é só a vida dos doentes com covid que está em risco”, precisa, exasperado com um confinamento com direito a múltiplas excepções: “Esta espiral só se trava se a prioridade for salvar vidas e não salvar eleições.”
Nas urgências dedicadas a doentes respiratórios, no pólo de Covões do CHUC, as ambulâncias acumulam-se à entrada, como em tantos outros hospitais. “Tenho pneumologistas que tiveram de ir fazer exames e observações dentro das ambulâncias porque já não conseguiam ‘puxar’ os doentes para dentro do serviço. Está tudo completamente saturado”, descreve, apelando à activação dos hospitais militares, mas também das estruturas “laterais” ao sistema nacional de saúde, como a Protecção Civil e a Cruz Vermelha. “As consequências dos dez mil casos diários que se sucedem há mais de uma semana só agora começaram a chegar aos hospitais”, nota, dizendo-se convencido de que não valerá abrir muitos hospitais de campanha “sem médicos ou enfermeiros e sendo que os que há estão no limite da exaustão”. “O que se está a viver é um clima de guerra e catástrofe, embora não pareça quando vemos as pessoas a passearem-se na marginal, em grupo e sem máscara”, enfatiza, lembrando o básico: “Sem um sistema de saúde que funcione, não há economia que se salve.”
Bruno Maia, neurologista e intensivista no Hospital de São José
No limite de ter de escolher entre “quem morre e quem não morre”
“Ainda não houve directivas no sentido de andarmos a escolher ou a seleccionar doentes, e a decidir quem morre e quem não morre, mas estamos no limite de ter de começar a fazer isto.” O aviso é do neurologista e intensivista Bruno Maia, a trabalhar no Hospital de São José, que integra o Centro Hospitalar de Lisboa Central, onde “a situação está muito complicada”, apesar do grande esforço e da aritmética dos profissionais que tentam por todos os meios “alocar doentes a vagas que não existem, seja nos intensivos seja nas enfermarias”.
“Estamos a viver num equilíbrio muito precário. Neste momento, já é impossível aumentar a flexibilidade dos hospitais, se não forem tomadas novas medidas”, declara Bruno Maia, apontando como urgente a abertura de novos espaços para acolhimento de doentes com covid-19 e a consequente requisição civil dos médicos do sector privado. “Já sabemos que os privados têm resposta limitada nos cuidados intensivos, mas pelo menos os profissionais podiam ser requisitados para os locais onde fazem mais falta”, sugere.
Acusando o Governo de pouco ter feito nos últimos seis meses para preparar o sistema nacional de saúde para a situação que o país está a viver, o médico lamenta que não tenha havido coragem para fechar pelo menos algumas escolas. “Era possível terem fechado pelo menos as universidades, que são o principal local de encontro do grupo etário que é neste momento o que apresenta maior numero de infecções, dos 18 aos 25 anos”, lamenta, dizendo-se convencido de que, sem isso, será difícil evitar o colapso do Serviço Nacional de Saúde, onde “todos os dias há profissionais que têm de ficar em casa porque ficam infectados”. “Isso obriga”, conclui, “que andemos num constante exercício de refazer escalas de serviço e somar horas de trabalho a profissionais cujo limite já foi atingido”.