Há novas suspeitas de actuação criminosa de inspectores da PJ no caso Rui Pinto
Tribunal ordena extracção de certidão depois de inspectora ter dito que não conseguiu ouvir conversa entre suspeitos mas que assinou de cruz relatório onde eram relatados diálogos.
Os juízes que estão a julgar o pirata informático Rui Pinto mandaram extrair uma certidão das declarações prestadas em tribunal por uma inspectora da PJ e por um colega seu. O objectivo é que possa vir a ser aberto um processo-crime visando apurar se cometeram os crimes de falsas declarações ou de falsidade de documento.
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Os juízes que estão a julgar o pirata informático Rui Pinto mandaram extrair uma certidão das declarações prestadas em tribunal por uma inspectora da PJ e por um colega seu. O objectivo é que possa vir a ser aberto um processo-crime visando apurar se cometeram os crimes de falsas declarações ou de falsidade de documento.
É a segunda certidão deste julgamento visando inspectores da PJ. A primeira foi deduzida em Dezembro, com o objectivo de apurar se o inspector Rogério Bravo se tinha comportado de forma criminosa ao ter alegadamente indicado à Doyen o nome de um jornalista que poderia ajudar o fundo de investimento a divulgar uma versão alternativa dos factos àquela que estava a ser divulgada pelo site Football Leaks sobre os seus negócios no universo do futebol.
Na altura ninguém podia adivinhar, mas a conversa que teve lugar numa quarta-feira do Outono de 2015 na estação de serviço de Oeiras ia revelar-se fulcral para o processo judicial hoje conhecido como Football Leaks. Dois homens fortes do fundo de investimento Doyen, ligado à venda de passes de jogadores, iam encontrar-se com o representante legal do principal responsável do site onde andava a ser divulgada informação confidencial sobre os negócios do mundo da bola.
Seria preciso esperar muito tempo até Rui Pinto se tornar conhecido como o pirata informático que criou o Football Leaks e que se introduziu nos sistemas informáticos que quis e lhe apeteceu, da Procuradoria-Geral da República aos principais clubes de futebol portugueses, passando por escritórios de advogados. E também não foi no encontro na estação de serviço que o então advogado do hacker, Aníbal Pinto, revelou a sua identidade.
Mas foi terá sido nesta reunião que os três homens discutiram quanto havia de ser pago a Rui Pinto para que parasse de divulgar os contratos com clubes e jogadores de futebol nos quais a Doyen estava envolvida. Quanto valia a imagem do fundo de investimento para os seus responsáveis? Um milhão? Meio milhão?
Embora ainda desconhecesse a identidade do habilidoso das proezas informáticas, a Polícia Judiciária soube do encontro em Oeiras a tempo de conseguir montar uma operação de vigilância. Para o terreno foram destacados dois inspectores, um dos quais, Hugo Monteiro, foi ouvido esta terça-feira de manhã no julgamento em que Rui Pinto e o seu ex-advogado Aníbal Pinto se sentam no banco dos réus. Ambos são acusados de tentar extorquir dinheiro à Doyen. E aquilo que os dois inspectores ouviram nessa tarde podia ter-se revelado crucial para apurar o que efectivamente se passou.
O problema é que, apesar de se terem sentado numa mesa que estaria a menos de três metros dos seus alvos e de o snack-bar se encontrar sem mais clientes, não conseguiram ouvir toda a conversa, que durou cerca de uma hora. Hugo Monteiro disse até aos juízes do Campus da Justiça de Lisboa que a missão de que estavam incumbidos não era sequer era escutar o que diziam os suspeitos – e sim perceberem se havia entrega de algum objecto entre os intervenientes que pudesse levar a detenções em flagrante delito, uma vez que se podia tratar de um pagamento. Isso e “garantir a segurança do espaço”.
Terá sido por isso que quando o advogado da Doyen se levantou para ir ao WC e o representante de Rui Pinto ficou sozinho com o administrador da Doyen, Nélio Lucas, nenhum dos dois inspectores terá ouvido as palavras que trocaram entre si. Garante Aníbal Pinto que foi nesta altura que o seu interlocutor lhe ofereceu um milhão para que denunciasse a identidade do hacker. “Estávamos ali para garantir a segurança do espaço. Quando chegava alguém perdíamos o fio à conversa”, justificou-se o inspector em tribunal.
“Aquilo foi um encontro de negócios, em que Aníbal Pinto se apresentou como intermediário de um negócio de um milhão ou de meio milhão”, disse, relacionado com a contratação pela Doyen do hacker responsável pelo Football Leaks. Hugo Monteiro recorda-se de os homens do fundo de investimento terem questionado a legalidade do negócio, que segundo uma proposta que lhes foi apresentada por Aníbal Pinto consistia em pagarem 1800 euros mensais a Rui Pinto em troca da sua alegada contratação como perito informático durante três a cinco anos, para evitar ataques online à Doyen. Mas diz que o advogado do pirata informático lhes apresentou a transacção como um negócio tranquilo.
Entretanto, da parte da tarde a colega de Hugo Monteiro, a inspectora Aida Freitas, surpreendeu os juízes ao garantir que não ouviu rigorosamente nada da conversa, por a mesa onde se encontravam estar demasiado distante da dos suspeitos. Apesar disso, assinou juntamente com o colega o relato de diligência externa confirmando alguns extractos da conversa. “Assinei de cruz, erradamente. Mais tarde, quando soube o que lá estava escrito, disse aos meus superiores hierárquicos que se tivesse sabido antes não teria assinado”. Aliás, segundo a testemunha nem foi sequer o colega a redigir o documento, mas sim terceiro inspector que não estava no snack-bar, José Amador.
Perante a crescente estupefacção dos magistrados – “Percebe a gravidade disto?!”, perguntou-lhe a juíza que dirige o julgamento –, Aida Freitas acabou por afirmar algo ainda mais bizarro: que é comum os inspectores rubricarem documentos de serviço sem sequer os lerem: “Muitos de nós assinamos as coisas sem as lermos”. Se o colega que assinou o relatório conseguiu ou não ouvir a conversa, disse ignorá-lo: “Não vou falar das condições auditivas dele, podem ser melhores que as minhas”. Mas esclareceu depois não sofrer de nenhum problema de surdez. Desmentiu porém que a mesa estivesse assim tão próxima dos alvos - falou em mais de cinco metros - e assegurou haver mais gente no estabelecimento.
A inspectora trabalha agora na Unidade Nacional de Combate à Corrupção, mas em 2015 estava ligada à investigação da criminalidade informática.