Reper: a “ponte” desconhecida que coordena a nossa vida na Europa
As representações permanentes desempenham um papel decisivo no plano das decisões ao nível europeu. A Reper nacional terá uma responsabilidade ainda maior devido à presidência portuguesa.
Existem duas ideias feitas sobre política internacional que habitualmente assentam em razões plausíveis. Uma é que parte substancial da diplomacia se desenrola em opacos bastidores. A outra, de natureza europeia, é que em Bruxelas existem vários serviços a actuar na sombra, apesar de encarregues de uma parte significativa da matéria burocrática e política, com implicações directas nas vidas dos cidadãos.
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Existem duas ideias feitas sobre política internacional que habitualmente assentam em razões plausíveis. Uma é que parte substancial da diplomacia se desenrola em opacos bastidores. A outra, de natureza europeia, é que em Bruxelas existem vários serviços a actuar na sombra, apesar de encarregues de uma parte significativa da matéria burocrática e política, com implicações directas nas vidas dos cidadãos.
As Reper, as representações permanentes dos estados-membros junto da União Europeia, poderiam ser o símbolo dessas duas ideias. Quando o assunto é matéria comunitária, é comum ouvir falar da Reper portuguesa – como aquando da polémica mais recente do procurador José Guerra e sobre o seu currículo com erros enviado, precisamente, à Reper. Mas apesar do importante papel no xadrez político europeu, as funções das representações permanentes continuam a ser desconhecidas para uma parte significativa dos cidadãos. Afinal, o que é a Reper?
“A Reper é a representação de cada estado membro junto das instituições europeias. Cada estado-membro tem uma representação sediada na cidade de Bruxelas, interagindo diariamente com a Comissão Europeia, com o Conselho de Ministros, com o Conselho Europeu e com o Parlamento Europeu”, explica ao PÚBLICO Maria João Rodrigues, antiga eurodeputada socialista, para quem os bastidores de Bruxelas não têm segredos.
A presidente da Fundação Europeia para Estudos Progressivos (um centro de reflexão sobre políticas europeias), habituada a relacionar-se com a Reper enquanto presença assídua em Bruxelas, destaca que a representação permanente portuguesa é “constituída por funcionários que cobrem todas as áreas de actuação da União Europeia” – ou não fosse a Reper a maior representação diplomática portuguesa.
Actualmente, segundo avançou a própria Reper ao PÚBLICO, a representação permanente de Portugal em Bruxelas é composta por 216 funcionários de todas as categorias, um número que aumentou substancialmente para a presidência portuguesa do conselho da União Europeia. Existem juristas, especialistas por sector (agricultura, saúde, economia), polícias, funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e conhecedores de praticamente todas as áreas possíveis de discussão no plano europeu. Cabe aos funcionários da Reper preparar os actores políticos e assegurar a representação portuguesa nos múltiplos grupos de trabalho da União Europeia.
A Reper tem obrigatoriamente de ser liderada por um embaixador no mais alto escalão da carreira (full rank). Actualmente, quem lidera os destinos da representação portuguesa é o embaixador Nuno Brito. Nomeado em 2015, chegou ao cargo após ter sido embaixador de Portugal nos Estados Unidos, director-geral dos Assuntos Europeus e director-geral de Política Externa no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
A Nuno Brito, enquanto representante permanente de Portugal em Bruxelas, é entregue um papel decisivo na defesa dos interesses nacionais. Isto porque uma parte substancial do trabalho realizado pelo Conselho da União Europeia não é feita pelos eleitos políticos, mas realizada nos Coreper, o I e o II.
No Coreper II, composto por todos os representantes permanentes e onde Nuno Brito representa Portugal, são discutidas matérias de natureza geral: assuntos económicos e financeiros, negócios estrangeiros, justiça e questões internas. São várias as reuniões por semana e as próximas estão marcadas para os dias 20, 22, 27 de Janeiro e 2 de Fevereiro.
Depois, ainda existe o Coreper I, onde têm assento os representantes permanentes adjuntos, que no caso português é o embaixador Pedro Lourtie – antigo secretário de estado dos assuntos europeus no segundo governo de José Sócrates. Nessas reuniões, são discutidas matérias sectoriais: agricultura e pescas; competitividade; educação, juventude, cultura e desporto; emprego e saúde; ambiente; transportes e telecomunicações e energia. Os próximos Coreper I, para se ter uma ideia da regularidade, vão se realizar a 20 e 27 de Janeiro e depois a 3 e a 5 de Fevereiro.
“[A Reper inclui] um grande corpo de funcionários que por sua vez estão em interligação permanente com os ministérios do Estado. Portanto, eles fazem a ponte entre o Estado de cada estado-membro por um lado, com as instituições europeias do outro lado”, sintetiza Maria João Rodrigues.
“Uma rede imensa de actores”
Com a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, o trabalho da Reper ganha ainda maior destaque. Nos próximos seis meses, a representação portuguesa prevê participar em 2400 reuniões em Bruxelas, presidindo a 2000 dessas. Caberá à Reper preparar cada uma das reuniões, bem como produzir relatos dos encontros e enviar dezenas de telegramas diários aos diferentes ministérios do Governo sobre tudo o que de relevante se passa a nível europeu sobre determinada área.
“No momento em que um estado-membro assume a presidência, a responsabilidade da Reper é ainda maior porque tem nas mãos todo um conjunto de negociações”, afirma Maria João Rodrigues, que também se debruçou sobre políticas europeias na sua carreira académica, acrescentando que “uma presidência actualmente é uma espécie de corrida de estafetas, como parte de uma longa maratona”.
A “maratona” a que a socialista se refere está relacionada com o “trio das presidências”, composto pela presidência actual, a anterior e a seguinte. “Nós recebemos um legado da presidência anterior, exercida pela Alemanha, e vamos transmitir o nosso legado à presidência seguinte, que será exercida pela Eslovénia”. Todas elas, diz, “trabalham de forma muito articulada”.
As diferentes Reper fazem parte uma rede complexa de agentes que definem as políticas europeias, mesmo que tal não seja perceptível aos olhos do cidadão comum. “Hoje em dia, quando uma decisão é tomada ao nível europeu, com implicações para o nosso dia-a-dia e há milhares de decisões por ano, essa decisão é influenciada por uma rede de actores muito mais vasta”, afirma.
Essa rede inclui não só as Reper e os representantes políticos mais visíveis, mas também “uma rede imensa de actores da sociedade civil”, composta por “milhares de entidades, associações, fundações”, que estão sediadas em Bruxelas para poderem “participar nesse processo de decisão diário”. Além desse trabalho, existe uma outra dimensão, “mais política”, relacionada com os partidos políticos europeus, que “coordenam e influenciam” a tomada de posição dos seus representantes nos diferentes órgãos europeus.
“Não é por acaso que antes das reuniões formais no Parlamento Europeu, no conselho de ministros ou no Conselho Europeu, há normalmente reuniões informais de preparação que são organizadas por essas famílias políticas”, revela Maria João Rodrigues, que no currículo ainda tem a vice-presidência de uma dessas famílias, o grupo dos Socialistas e Democratas.
Face a essa opacidade no processo da tomada de decisão, a antiga eurodeputada defende que a “marca mais importante” da “nova fase do projecto europeu” deve ser a promoção de uma “cidadania europeia”. “A minha ideia central para a nova fase é que este desconhecimento, esta distância, tem de acabar. As pessoas têm de ter meios para serem envolvidas nessas decisões, de serem informadas, de poderem fazer ouvir a sua opinião”, defende, argumentando que o envolvimento dos europeus deve ser acompanhado com uma “nova geração de direitos”, ao nível da saúde, ambiente, educação e meios digitais.
Um estudo da Comissão Europeia, divulgado em Novembro de 2019, ajuda a perceber a distância que vai entre os europeus e os corredores de Bruxelas. Numa Europa a 27, apenas os cidadãos de cinco países assumiram estar bem informados sobre assuntos europeus. Em Portugal, que está em penúltimo da lista, 77% dos inquiridos afirmaram não estar bem informados sobre as matérias europeias (ver infografia). “[É preciso formar uma] cidadania política. Ou seja, a capacidade de os cidadãos serem envolvidos nos momentos certos quando a decisão está para ser tomada, porque ainda estamos muito longe do que é necessário”.