É urgente melhorar a democracia e transparência das autarquias
A inamovibilidade e a impressionante concentração de poderes na pessoa do presidente da câmara transforma em verdadeiros ditadores autárquicos aqueles que tenham essa predisposição genética. Nem sequer há forma expedita de os obrigar a cumprir a lei.
Em Portugal não há uma verdadeira democracia nas autarquias, tornando mais difícil e lento o desenvolvimento do país, por força de uma legislação ultrapassada, que urge corrigir.
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Em Portugal não há uma verdadeira democracia nas autarquias, tornando mais difícil e lento o desenvolvimento do país, por força de uma legislação ultrapassada, que urge corrigir.
A filosofia e a estrutura de organização política das autarquias e do governo central são distintas e contraditórias, com consequências graves para o (mau) funcionamento em algumas autarquias. O sistema depende demasiado das características individuais dos autarcas.
A nível central, o primeiro-ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais (n.º 1, art.º 187 da CRP), permitindo a interessante experiência democrática do governo nacional que ficou conhecido pela ‘geringonça’. Em qualquer momento, e muito bem, uma (nova) maioria dos deputados dispõe de mecanismos constitucionais para impor a mudança de governo. Ora, tal exercício democrático é impossível nas autarquias, onde vigora um estranho presidencialismo centralista.
Por Lei, o presidente da câmara (e das juntas de freguesia) não é quem consiga reunir um apoio maioritário entre os eleitores, vereadores ou membros eleitos da Assembleia Municipal (AM), mas sim o primeiro candidato da lista mais votada (art.º 57.º, Lei 169/99), mesmo que esteja em minoria eleitoral, o que é um paradoxo. Ainda que uma ampla maioria de eleitos quisesse designar, na AM, um outro presidente de câmara, a lei não o permite. Nas autarquias não são possíveis ‘geringonças’, o que limita o exercício da democracia a nível local e impõe uma ‘ditadura da minoria’.
A inamovibilidade e a impressionante concentração de poderes na pessoa do presidente da câmara (art.ºs 34.º e 35.º, Lei 75/2013) transforma em verdadeiros ditadores autárquicos aqueles que tenham essa predisposição genética. Nem sequer há forma expedita de os obrigar a cumprir a lei. A Inspeção Geral da Administração Local (IGAL) foi extinta em 2011 e incorporada na Inspeção Geral das Finanças (IGF), mas esta última não responde às participações que lhe são enviadas; é um vazio perigoso e frustrante.
São muitos os exemplos possíveis. Quando o regimento das reuniões da câmara é violado, como acontece em Coimbra, os vereadores da oposição não têm nenhuma entidade à qual recorrer de forma consequente e atempada. O presidente da Câmara Municipal de Coimbra, que também é presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, não cumpriu o Decreto-Lei 57/2019, relativo à descentralização de competências da câmara para as freguesias, prejudicando estas últimas prepotentemente, e nada acontece. Isto não é democracia.
Segundo o n.º 7 do art.º 42.º da Lei 75/2013, o presidente da câmara municipal deve disponibilizar a todos os vereadores os recursos físicos, materiais e humanos necessários ao exercício do respetivo mandato. Se não o fizer, como não foi feito em Coimbra, nada acontece. Esta ausência de condições e meios, por parte de vereadores que continuam a desempenhar as suas profissões, dificulta um dos principais mecanismos de defesa da democracia, o escrutínio apropriado por parte da oposição. Em Coimbra, violando o respectivo regimento, nem sequer são enviados aos vereadores da oposição, em formato digital, todos os documentos essenciais para um estudo aprofundado de alguns temas agendados e, este ano, as GOP e o orçamento para 2021 foram enviados com apenas dois dias úteis de antecedência.
A AM deveria exercer uma função fiscalizadora semelhante à da Assembleia da República, porém, os poderes da primeira, como órgão deliberativo, são muito limitados e quase decorativos. A AM não pode introduzir modificações nas opções do plano e na proposta de orçamento que lhe são presentes pelo executivo e o debate é pouco mais do que um curto momento de inconsequente teatro político. Os deputados municipais ou aprovam tudo, ou chumbam tudo, não há outra alternativa (art.º 25.º, Lei 75/2013). Também a sua capacidade de apreciação e fiscalização está muito limitada, com apenas cinco sessões ordinárias anuais, que decorrem com imensas restrições e com a proibição de apresentação de moções de censura.
Assiste-se igualmente ao fenómeno curioso da dupla representação na AM, distorcendo a representatividade eleitoral, pois os munícipes elegem diretamente os deputados municipais mas os presidentes de junta também têm assento na assembleia.
Infelizmente, em Portugal as AM não podem atuar como verdadeiros parlamentos locais e são completamente subalternizadas, ao contrário das grandes democracias europeias. “Tudo isto viola o direito de oposição democrática e, acrescento eu, a própria ideia de separação de poderes, tal como sempre foi entendida na Europa, ou seja, com subordinação, em termos de confiança política, do órgão executivo ao órgão deliberativo” (Freitas do Amaral em O Estatuto do Direito de Oposição nas Autarquias Locais, de Luís Filipe Mota Almeida). É urgente redemocratizar o poder local (Jorge Miranda, jornal PÚBLICO, 4/11/2013).
A legislação autárquica em vigor interessa aos caciques partidários locais, que assim exercem um poder quase absoluto e praticamente não escrutinável na vida local, o que potencializa a corrupção a múltiplos níveis e formas. Os partidos com representação parlamentar, em particular o PS e o PSD, têm a obrigação ética e política de promover a revisão e modernização urgentes do enquadramento legal das autarquias.
É um paradoxo falar-se de descentralização sem se democratizar, modernizar e tornar mais transparente, participada e devidamente escrutinada a governação municipal.
Certamente ninguém conseguiria imaginar o país a ser governado com o modelo legislativo autárquico, demasiado frágil, imperfeito e excessivamente presidencialista, pelo que o caminho deverá ser o de importar o regime parlamentar e de responsabilidade partilhada para as autarquias, o que favoreceria a democracia e o desenvolvimento municipal, implementando um modelo que reequacione o papel e a presença da oposição no órgão executivo, que reforce a capacidade e o poder da AM como órgão deliberativo e fiscalizador e que permita uma verdadeira democracia local, possibilitando a constituição de maiorias pós-eleitorais que governem a autarquia de acordo com a vontade maioritária do povo.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico