“Não sei como foi possível o meu pai apanhar covid-19. Ele nunca sai de casa”

No hospital de Loures, familiares de internados por covid não sabem do dever de realizar o teste por terem mantido contactos com pessoas doentes. No Santa Maria em Lisboa, o presidente do conselho da administração diz que o sistema de saúde está muito próximo do limite.

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O ambiente à porta das urgências do Hospital Beatriz Ângelo de Loures na tarde deste sábado não correspondia em nada ao caos descrito por quem sabe o que se passa lá dentro. Não há filas, nem pessoas aflitas, não se ouvem sirenes e as ambulâncias chegam, estacionam e com calma os seus profissionais encaminham, a pé, de cadeira de rodas ou numa maca, os doentes para o interior vedado a todos os outros.

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O ambiente à porta das urgências do Hospital Beatriz Ângelo de Loures na tarde deste sábado não correspondia em nada ao caos descrito por quem sabe o que se passa lá dentro. Não há filas, nem pessoas aflitas, não se ouvem sirenes e as ambulâncias chegam, estacionam e com calma os seus profissionais encaminham, a pé, de cadeira de rodas ou numa maca, os doentes para o interior vedado a todos os outros.

Na sala de espera que se vislumbra por entre o vidro, estão pessoas sentadas a um metro ou pouco mais de distância entre si. Não há acompanhantes a não ser em situações mais extremas.

Entre os poucos familiares no exterior, Idalina (nome fictício) espera que lhe entreguem a roupa que o pai octogenário trazia vestida quando foi internado uma hora antes.“Ninguém sabia que era covid”, diz Idalina, uma de cinco irmãos. “O meu pai tinha que ser internado, tem um problema de coração. Ficámos a saber hoje que tinha covid”, continua.

A mulher, que pensava vir resolver uma situação rápida, não traz agasalho por cima da malha que lhe cobre um pouco as calças. Não terá mais de 60 anos mas, sob um vento que gela ao cair da noite, o seu rosto parece envelhecido e o seu corpo desamparado pela incerteza.

O que fazer agora se nem viu que uma tempestade se aproximava? “Não sei como foi possível o meu pai apanhar covid. Ele nunca sai de casa.” Conversa como quem vai enganando a espera. “O meu pai está sempre em casa”, repete.

Se não sai, só pode ter sido a outra filha que trabalha e vive com ele na mesma casa onde reside um outro irmão doente, diz Idalina. Ela própria esteve com o pai na véspera – mas tem estado pouco. “Ontem só lhe fiz uma festa na cabeça quando fui vê-lo”, diz mostrando o gesto com as mãos.

Não está a pensar fazer o teste, nem sabe que, por precaução, devia fazê-lo e, por dever, devia manter-se em isolamento. Nem a irmã, que cuida do pai, se predispôs a fazer o teste. “Nós dissemos-lhe mas ela não vai fazer o teste. Não sei porquê, ela é que sabe.”

Afluência e acalmia

Neste hospital de 400 camas, a entrada repentina de 187 pessoas com covid enche de incerteza a perspectiva dos outros doentes. Uma mulher de chinelas e o roupão sobre o pijama que trouxe de casa sai das urgências pela mão de uma auxiliar. O seu ar é de alívio quando vê uma jovem que aparenta ser sua neta. A postura é de quem está quase bem, até ao momento em que do braço começa a jorrar sangue e ela, que estava de pé, se curva toda.

A fraca movimentação do final da tarde está longe do cenário da véspera mostrado em longas filas de ambulâncias junto à entrada de doentes com covid-19 em alguns hospitais. “Ontem havia um grande afluxo de ambulâncias, e traziam pessoas com covid porque vinham entubados e de maca”, diz Rita fixando com o olhar preocupado a porta de onde virão as notícias de um familiar internado.

No Hospital de Santa Maria em Lisboa, um dos dois hospitais onde o movimento excepcional da noite anterior fez soar os alarmes, o presidente do conselho de administração, Daniel Ferro, marcou encontrou com os jornalistas na porta principal esclarecer que o que se passava não era o “caos”. 

Mas não poupou nas palavras para descrever a situação surgida nos últimos 15 dias. “A capacidade do sistema está próxima, muito próxima do limite”, avisou. Descreveu um contexto em que 0 acréscimo admissões no hospital para o tratamento destes doentes foi de 70%, insustentável no tempo e incomparável com o que vinha acontecendo até fim de Dezembro.

Responsabilidade partilhada

As duas últimas semanas têm sido de picos sucessivos de entradas de doentes com covid-19 nas urgências e nos internamentos, descreveu o responsável para enquadrar o sucedido na véspera. “Na noite de ontem, tivemos um desses picos” que se vêm repetindo num contexto em que o hospital e os seus profissionais estão em “situação de sobre-esforço”.

É possível estar em “sobre-esforço por um período curto e de forma limitada”, acrescentou Daniel Ferro deixando claro que este sobre-esforço “é uma solução que não pode estar apenas nos hospitais”.

Por isso, apela a “uma responsabilidade partilhada entre os hospitais e a sociedade” para conter a terceira vaga que ultrapassou expectativas e o plano de contingência criado

“A responsabilidade de cada um no risco e na atitude que lhes são pedidos tem que ser mais efectiva”, concretiza ao PÚBLICO. Disso também irá depender a sua expectativa vir ou não a ser frustrada. A expectativa de que em duas semanas “a situação fique controlada”.

“Há uma disponibilidade dos profissionais de saúde que, fora desta pandemia, é difícil de obter”, diz pouco depois ao PÚBLICO, descrevendo a manifesta predisposição para se reforçarem as equipas nas unidades de covid-19 com profissionais de diversas especialidades. Mas também aqui, sublinha, pode estar-se muito perto do limite, porque a disponibilidade pessoal e dedicação profissional não são ilimitadas.