Profissionais de Saúde: de heróis a vítimas da pandemia
Numa altura em que um esforço desmedido nos é novamente pedido, urge que estes problemas sejam uma prioridade política. Senão corremos o risco de que muitos mais profissionais de saúde colapsem, como Lorna Breen colapsou.
Lorna Breen, 49 anos, era uma internista, directora do Serviço de Urgência do New York Presbiterian Allen Hospital em Manhattan, Nova Iorque, epicentro da pandemia de covid, onde as mortes chegaram a 800 por dia. Quando começou a pandemia ela acorreu ao hospital para cuidar dos doentes que começavam a chegar em catadupa. Quatro dias depois, em 18 de Março, foi infectada com covid-19 e ficou sozinha em casa, febril e fraca. Ainda debilitada, voltou ao trabalho no primeiro dia de Abril. Lorna estava escalada para trabalhar em nove turnos de 12 horas consecutivas e ficava até tarde todos os dias, chegando a trabalhar 18 horas por dia e a dormir nos corredores. Trabalhar em área covid, vestida com um equipamento de protecção individual, sem poder beber água nem ir à casa de banho, horas a fio, era muito duro. Um fluxo implacável de ambulâncias com doentes infectados continuava a afluir ao hospital. Muitos morriam antes de serem retirados das ambulâncias. As mortes por covid-19 acumulavam-se ante os seus olhos. Os protocolos mudavam todos os dias. No dia 26 de Abril suicidou-se. No dia seguinte, o New York Times noticiava: “A melhor médica das Urgências morreu por suicídio”. Era uma pessoa entusiástica, atleta e sem antecedentes de problemas mentais. Presidia a um grupo de trabalho do American College of Physicians.
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Lorna Breen, 49 anos, era uma internista, directora do Serviço de Urgência do New York Presbiterian Allen Hospital em Manhattan, Nova Iorque, epicentro da pandemia de covid, onde as mortes chegaram a 800 por dia. Quando começou a pandemia ela acorreu ao hospital para cuidar dos doentes que começavam a chegar em catadupa. Quatro dias depois, em 18 de Março, foi infectada com covid-19 e ficou sozinha em casa, febril e fraca. Ainda debilitada, voltou ao trabalho no primeiro dia de Abril. Lorna estava escalada para trabalhar em nove turnos de 12 horas consecutivas e ficava até tarde todos os dias, chegando a trabalhar 18 horas por dia e a dormir nos corredores. Trabalhar em área covid, vestida com um equipamento de protecção individual, sem poder beber água nem ir à casa de banho, horas a fio, era muito duro. Um fluxo implacável de ambulâncias com doentes infectados continuava a afluir ao hospital. Muitos morriam antes de serem retirados das ambulâncias. As mortes por covid-19 acumulavam-se ante os seus olhos. Os protocolos mudavam todos os dias. No dia 26 de Abril suicidou-se. No dia seguinte, o New York Times noticiava: “A melhor médica das Urgências morreu por suicídio”. Era uma pessoa entusiástica, atleta e sem antecedentes de problemas mentais. Presidia a um grupo de trabalho do American College of Physicians.
Muitos casos destes aconteceram e continuam a acontecer em todos os países, de médicos, de enfermeiros, auxiliares de acção médica e tripulantes de ambulâncias. Também de profissionais que morrem infectados por covid-19. No Reino Unido, em Dezembro, eram cerca de 3000. Desconhecemos este número em Portugal, mas o Ministério da Saúde, em Setembro, anunciou que havia cerca de 5000 profissionais de saúde infectados.
Sobre os profissionais de saúde recaíram todas as fragilidades do SNS expostas por esta pandemia: o desinvestimento na saúde, a escassez de recursos humanos, a falta de equipamentos de protecção individual, a redução progressiva das camas hospitalares e a insuficiente capacidade em cuidados intensivos, a falta de preparação para emergências de saúde, a inadequação do actual modelo fragmentado de hospital, a fraca capacidade de resposta para cuidar de doentes com multimorbilidade, os problemas de comunicação, a falta de integração entre os vários níveis de cuidados e a falta de articulação da saúde com a assistência social. Tudo isto, aliado à carga física e emocional que representa cuidar destes doentes, o receio de contágio e a falta de compensação pelo risco acrescido, contribuíram para que, na primeira onda desta pandemia, cerca de 70% dos profissionais de saúde em Portugal apresentassem níveis moderados ou elevados de burnout e 51% se queixassem de exaustão física e psicológica, segundo um estudo da Universidade do Porto, embora se tenha que ter em conta que os níveis de burnout pré-pandémicos já eram elevados.
Em Março de 2020, quando pensávamos que isto era uma corrida de 100 metros, houve boa vontade, envolvimento de múltiplas especialidades médicas, os profissionais de saúde foram aclamados, mas, à medida que nos apercebemos que é uma maratona, nos hospitais, as diversas especialidades foram retomando a sua actividade normal, ficando os internistas e os infecciologistas a acumular a assistência nas enfermarias com as urgências, e os intensivistas nos cuidados intensivos, juntamente com os outros profissionais. Casos de retaliação por protestos dos profissionais de saúde têm sido denunciados pela Amnistia Internacional em muitos países. Num inquérito da Ordem dos Enfermeiros, 70% dos que responderam referiram ter sido vítimas de violência ou descriminação. Os pedidos de reforma acumulam-se, os pedidos de rescisão também, a emigração de médicos e enfermeiros acelera.
O discurso político e dos media está focado em medidas restritivas, na capacidade dos hospitais, no número de camas de enfermaria e de cuidados intensivos, no número de vacinados, mas pouco se fala da compensação dos profissionais de saúde, do seu grau de exaustão e burnout e dos seus níveis de ansiedade e depressão.
O Programa Nacional de Saúde Mental criou gabinetes de crise em todos os hospitais, gabinetes que é fundamental manter e reforçar nesta segunda vaga, mas o apoio psicológico aos profissionais de saúde não é suficiente. Numa altura em que um esforço desmedido nos é novamente pedido, urge que estes problemas sejam uma prioridade política: é necessário recrutar mais pessoas, mudar as organizações, assegurar que os profissionais de saúde tenham dinheiro para sustentar as suas famílias, envolve-los nas decisões que lhe dizem respeito, considerar o sector privado parte da solução, distribuir mais equitativamente a carga de trabalho, permitir que possam descansar, ter tolerância zero em relação à violência de que são vítimas, combater o estigma, senão corremos o risco de que muitos mais profissionais de saúde colapsem, como Lorna Breen colapsou...
Internista. Membro Honorário do American College of Physicians