60% já apagaram a StayAway Covid: são 1,8 milhões de portugueses

As pessoas estão a perder confiança na StayAway Covid. Cinco meses depois de ser lançada, a aplicação StayAway Covid só foi usada para enviar alertas de contágio 2708 vezes. O Inesc Tec queixa-se de falta de organização, falta de formação de médicos e burocracia.

Foto
MIGUEL MANSO

Desde Setembro, quase 1,8 milhões de pessoas já desistiram da StayAway Covid — a app móvel criada para acelerar o rastreio de contactos das pessoas que são diagnosticadas com covid-19 em Portugal. Depois de atingir um pico de utilizadores activos em Outubro, altura em que o primeiro-ministro António Costa apresentou no Parlamento uma proposta de lei para tornar obrigatória a utilização da app (que foi chumbada), os números têm vindo a descer e em Janeiro apenas 39% das quase três milhões de pessoas que instalaram a aplicação é que a continuam a usar. 

O problema é que ter a aplicação parece servir para pouco: é preciso inserir um código que as pessoas infectadas não sabem a quem pedir (ou esquecem-se de perguntar) e alguns profissionais de saúde não sabem onde encontrar. Nos últimos cinco meses, apenas 2708 códigos foram usados.

Os números, até 13 de Janeiro, foram avançados ao PÚBLICO pela equipa do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (Inesc Tec), que coordena a aplicação.

“As pessoas estão a perder a confiança na app porque não há códigos”, admite ao PÚBLICO o presidente do Inesc Tec, José Manuel Mendonça, que lidera a equipa responsável pela StayAway Covid. “E não há códigos porque os médicos estão mal informados sobre a forma como a app funciona e onde se encontram os códigos”, continua. “Desde que a aplicação foi lançada que há médicos que nos contactam a pedir ajuda. Não deveria ser assim.”

Aumentar

O problema dura desde meados de Outubro, quando o PÚBLICO primeiro noticiou dificuldades na utilização dos códigos da StayAway Covid. 

O Inesc Tec diz que já actualizou a aplicação para os códigos serem enviados directamente para os telemóveis dos utilizadores, mas é preciso luz verde da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), que precisa de receber uma avaliação do impacto das modificações feitas à app pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS). O processo está em pausa há meses.

“Enviámos a proposta há quase oito semanas, a 20 de Novembro”, recorda Mendonça. “Ao enviar os códigos directamente para app podia-se diminuir o tempo de aviso aos contactos de risco, não gastar o precioso tempo dos médicos e dar resposta cabal aos muitos utilizadores da aplicação que se sentem defraudados”, argumenta. “Só que continuamos à espera.”

Foto
Em Outubro, António Costa sugeriu impôr o uso da aplicação LUSA/RUI MANUEL FARINHA

A porta-voz da CNPD, Clara Guerra “confirma que houve uma reunião” sobre o tema e que “aguarda a submissão da avaliação de impacto para controlo prévio”. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Saúde remeteu a questão para o SPMS. À hora de publicação deste artigo ainda não havia resposta.

Actualmente, tem de ser um médico a obter o código junto da plataforma Trace Covid que foi criada para dar suporte aos profissionais de saúde no rastreio de contactos, vigilância e seguimento clínico a doentes com suspeita ou confirmação de covid-19. Basta carregar no ícone com o símbolo da StayAway Covid.

“Se não o vêem, é porque não sabem onde procurar”, insiste Mendonça.

Pessoas não querem códigos

Rui Nogueira, médico de família e ex-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), acredita que o problema é outro. “Custa-me acreditar que tantos médicos tenham dificuldades em encontrar o código. É fácil de o ver. O problema é que as pessoas se esquecem de pedir os códigos na altura do diagnóstico, ou acham que serve de pouco se vão ficar isoladas”, diz Nogueira ao PÚBLICO.

Segundo dados do Inesc Tec, foram entregues cerca de 11 mil códigos desde o lançamento da aplicação, mas apenas 24% foram utilizados. Parte do problema vem da ideia de que a app avisa as pessoas com quem alguém está depois de esta ser diagnosticada. Na realidade, a aplicação foi criada para avisar anonimadamente as pessoas com quem alguém esteve até ao diagnóstico positivo  (desde que essas pessoas também usem a app).

“Eu não tenho entregado muitos códigos, mas acho que seria mais fácil se as pessoas não tivessem de pedir e fosse directamente à app”, pondera Nogueira.

Rastreadores automáticos ajudam

Para Mendonça, o governo está a descurar uma ferramenta importante ao deixar os problemas com a StayAway Covid por resolver numa altura em que são precisos mais rastreadores humanos. Grande parte dos infectados durante o período de Natal e do Ano Novo (87%) desconhece a origem do contágio.

“É frustante ler notícias destas quando existe um sistema automático para fazer o rastreio de contactos que poderia detectar contágios em ambientes públicos como um supermercado ou autocarro”,  partilha o director do Inesc Tec.

Ainda não foram feitos estudos sobre a utilização da aplicação em Portugal, mas na Suíça, onde cerca de 22% da população utiliza a SwissCovid (equivalente à aplicação de rastreio portuguesa), investigadores do Instituto de Epidemiologia, Bioestatística e Prevenção da Universidade de Zurique, estimam que a aplicação já ajudou a travar 30 cadeias de transmissão activas.

“Com a app, há mais 5% de pessoas a isolarem-se. Muitas delas fazem-no até um dia mais cedo do que se não tivessem recebido um alerta. Parece pouco, mas são muitas as cadeias de transmissão cortadas porque a aplicação ajuda a detectar possíveis contágios fora do agregado familiar”, explica ao PÚBLICO Viktor von Wyl, epidemiologista da Universidade de Zurique. “Isto foi particularmente importante em Novembro quando um aumento de casos de covid-19 trouxe uma grande pressão ao sistema de rastreio de contacto manual. A app ajudou a colmatar as falhas.”

Tal como a aplicação portuguesa, a aplicação da Suíça também teve problemas com a entrega de códigos. O caso foi resolvido ao autorizar mais profissionais a emitirem códigos, e a confiança na app foi restabelecida ao oferecer um teste grátis a todas as pessoas que recebessem um alerta de contágio.

“Espero que os países que estão a ter problemas dêem uma segunda oportunidade às aplicações. É claro que as apps não são a solução para a pandemia, mas os nossos estudos mostram que quando funcionam bem há mais pessoas que se isolam”, sublinha von Wyl. “Mas para isso é preciso garantir que o sistema funciona.”

O Inesc Tec diz que a app portuguesa está pronta. “A solução está pronta, à espera que o SPMS envie o estudo de impacto à CNPD”, frisa Mendonça. “É difícil percebermos o contributo da app e a influência que teria na situação actual, mas é certo que mais pessoas teriam sido avisadas. E aí teriam ficado em casa ou procurado fazer um teste rápido como tanta gente fez no Natal antes de estarem com a família. E as pessoas que tiveram comportamentos irresponsáveis e que foram a festas ilegais teriam ficado com medo e evitado comportamentos irresponsáveis.”