Segredo profissional dos jornalistas e investigação criminal
Qualquer agressão ao direito dos jornalistas ao sigilo profissional afeta gravemente a função fiscalizadora dos media e a concretização por estes do direito de todos os cidadãos a serem informados. Em última instância, representa um golpe profundo no Estado de Direito Democrático.
O direito dos jornalistas ao sigilo profissional constitui um elemento essencial da liberdade de imprensa, proibindo, à partida, todas as atuações do Estado, mormente das Autoridades Judiciárias (AJ) e dos Órgãos de Polícia Criminal (OPC), suscetíveis de identificar as fontes informativas desses profissionais da comunicação social. O âmbito deste direito é exatamente o mesmo estando em causa informações referentes a processos criminais em segredo de justiça. Ademais, a sua proteção não pressupõe a licitude do comportamento das fontes.
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O direito dos jornalistas ao sigilo profissional constitui um elemento essencial da liberdade de imprensa, proibindo, à partida, todas as atuações do Estado, mormente das Autoridades Judiciárias (AJ) e dos Órgãos de Polícia Criminal (OPC), suscetíveis de identificar as fontes informativas desses profissionais da comunicação social. O âmbito deste direito é exatamente o mesmo estando em causa informações referentes a processos criminais em segredo de justiça. Ademais, a sua proteção não pressupõe a licitude do comportamento das fontes.
A consagração do referido direito tem por objetivo permitir que os jornalistas consigam concretizar a função fiscalizadora da comunicação social, sobretudo relativamente aos poderes, públicos e privados, e satisfazer o direito dos cidadãos a serem informados.
Qualquer agressão ao direito dos jornalistas ao sigilo profissional, não só fragiliza ou destrói a confiança, quer da fonte exposta, quer de outras fontes, no jornalista em causa e no órgão de comunicação social para o qual o mesmo trabalha, como provoca um efeito inibidor (chilling effect) em inúmeras fontes informativas relativamente à generalidade dos jornalistas e órgãos de comunicação social. Por conseguinte, afeta gravemente a função fiscalizadora dos media e a concretização por estes do direito de todos os cidadãos a serem informados. Em última instância, representa um golpe profundo no Estado de Direito Democrático.
Por isso, a nossa Constituição (CRP), ao contrário do que faz relativamente à maior parte dos restantes direitos dos jornalistas, cuja regulação entrega sem mais ao legislador, apenas permite, ou melhor, impõe que este proteja o direito desses profissionais da comunicação social ao sigilo profissional (art. 38.º, n.º 2, al. b), da CRP).
Nesta linha, até à entrada em vigor do atual Código de Processo Penal (CPP), o legislador português tratava esse direito como um direito absoluto, insuscetível de quaisquer restrições, como de resto sucede noutros países. Todavia, o CPP de 1987 veio alterar este quadro, aliás contra a opinião do Presidente da República de então, Mário Soares, o que, no entanto, foi chancelado pelo Tribunal Constitucional, cuja amizade pela liberdade de imprensa nunca foi efusiva.
De todo o modo, as normas do CPP e do subsequente Estatuto do Jornalista (EJ) que permitem agressões ao direito dos jornalistas ao sigilo profissional devem ser interpretadas restritivamente, devendo as AJ mostrar-se especialmente contidas na determinação dessas agressões. Aliás, o comando constitucional que impõe a proteção desse direito também a elas se dirige. Assim, as AJ somente devem tomar medidas que fragilizem o sigilo profissional dos jornalistas em casos excecionalíssimos, se e na estrita medida em que tal se mostrar efetivamente imprescindível à realização de interesses de superlativa relevância. Por conseguinte, dificilmente poderá chancelar-se uma agressão ao direito em tema para investigação da prática de crimes de menor gravidade, com molduras penais reduzidas, como é o caso, por exemplo, do crime de violação de segredo de justiça, o qual é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
Acresce que, atentos os superiores interesses constitucionais associados ao direito dos jornalistas ao sigilo profissional, todas as provas obtidas através de agressões ilegítimas a esse direito devem considerar-se provas proibidas. Deste modo, não podem ser admitidas, transmitindo-se essa proibição a todas as demais provas que decorram daquelas (exceto se pudessem ter sido obtidas diretamente, mesmo na falta da prova viciada, através de um comportamento lícito alternativo), devendo a primeira e as segundas ser havidas como juridicamente inexistentes, ou, pelo menos, nulas, vício que não só é do conhecimento oficioso até à passagem em julgado da decisão final, como não se convalida com o trânsito desta.
Por sua vez, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) não só considera que as restrições à confidencialidade das fontes de informação dos jornalistas requerem da sua parte uma análise especialmente cuidadosa, como tem afirmado recorrentemente que, perante a “importância que assume a proteção das fontes jornalísticas para a liberdade de imprensa numa sociedade democrática, qualquer medida destinada a restringi-la somente será conciliável com o artigo 10.º da Convenção se se basear num imperativo de proeminente interesse público”. Porém, a verdade é que decorre da sua já longa jurisprudência sobre a matéria que o TEDH dificilmente admite o recuo da tutela do direito dos jornalistas ao segredo profissional. Tal sucedeu, por exemplo, no caso Nordisk Film & TV A/S vs. Dinamarca, mas porque o Supremo Tribunal dinamarquês, pese embora tivesse determinado a apresentação de gravações não editadas e apontamentos de um jornalista, com vista à investigação de uma rede de pedofilia, restrigira os elementos a apresentar de modo a que não fosse possível a identificação das fontes e auxiliares do jornalista.
Ora, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), tal como é interpretada pelo TEDH, faz parte integrante da ordem jurídica portuguesa, de resto com valor superior ao das leis ordinárias, designadamente ao CPP, pelo que deve ser aplicada pelas AJ portuguesas, aliás sob pena de poderem incorrer na prática de um crime de denegação de justiça (art. 369.º, n.º 1, do Código Penal).
Para além disso, importa ter-se presente que o Conselho da Europa tem mostrado grande preocupação com a proteção do direito dos jornalistas ao sigilo profissional. Entre outros documentos produzidos por esse Conselho, é de sublinhar a Recomendação 1950 (2011), de 25/01/2011, da respetiva Assembleia Parlamentar, na qual, em face da progressão do securitarismo, este órgão afirmou a sua preocupação com as afetações ao referido direito levadas a cabo por AJ e por OPC no âmbito do combate ao terrorismo, nomeadamente através de escutas telefónicas e de controlo de dados, tendo sido aí aconselhada a formulação de diretrizes dirigidas aos procuradores e às polícias, bem como a elaboração de material formativo destinado aos juízes, com vista à defesa do sigilo profissional dos jornalistas.
Todavia, não raramente, as AJ portuguesas, desconsiderando o nosso sistema constitucional, irrelevando a CEDH, encarando o interesse na perseguição criminal como absoluto, senão o único, e sustentando-se em leituras formais e isoladas de algumas normas do CPP e de diplomas conexos, desprezam totalmente o direito dos jornalistas ao segredo profissional, assim lesando gravemente o Estado de Direito Democrático e envergonhando Portugal nas instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos. O que se diz ter sucedido num alegado inquérito aberto para investigação de pretensas violações de segredo de justiça relativamente ao processo E-Toupeira parece ser novo exemplo disso, desta feita um exemplo radical.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico