Nil deu a volta à Europa de bicicleta... em plena pandemia. Mas como?
É uma viagem que já recebeu tanto aplausos como críticas. Mas Nil Cabutí explica-se: partiu de Barcelona em direcção a Singapura pouco antes de a pandemia fechar fronteiras e trocar-lhe as voltas. Decidiu seguir caminho e, por entre restrições e aberturas, ao longo de dez meses, atravessou 43 países: quase 26 mil quilómetros e com passagem por Portugal.
Nil Cabutí, 30 anos, sempre gostou de andar de bicicleta, conta à Fugas. Quando era miúdo, chegou a participar em competições de ciclismo e, mais tarde, fez várias viagens a pedal durante as férias, às vezes de uma semana ou mesmo um mês, consoante o tempo que tinha disponível. Mas nenhuma tão longa como aquela que preparava há alguns anos: ir de bicicleta até Singapura. “Sempre tive em mente fazer uma coisa em grande. Uma longa, longa viagem.”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Nil Cabutí, 30 anos, sempre gostou de andar de bicicleta, conta à Fugas. Quando era miúdo, chegou a participar em competições de ciclismo e, mais tarde, fez várias viagens a pedal durante as férias, às vezes de uma semana ou mesmo um mês, consoante o tempo que tinha disponível. Mas nenhuma tão longa como aquela que preparava há alguns anos: ir de bicicleta até Singapura. “Sempre tive em mente fazer uma coisa em grande. Uma longa, longa viagem.”
Depois de seis anos a trabalhar em diferentes países para a mesma empresa internacional de construção, o engenheiro civil catalão decidiu tirar uma licença sem vencimento em 2020. Singapura era a meta quando partiu de Barcelona, a 27 de Fevereiro, por ser o primeiro país onde tinha trabalhado e, simultaneamente, o lugar mais distante onde poderia chegar em duas rodas, sem saltar por ilhas e mares.
Esse era o plano, porque o coronavírus parecia ainda pouco mais do que “uma gripe chinesa”. Itália já aparecia nas notícias, Espanha confirmava os primeiros casos no continente, mas o que preocupava Nil ao partir era mesmo poder ter algum problema ao entrar na China, daí a tantos meses, uma vez que a situação estava “já muito má” por ali.
“Depois de duas semanas a pedalar descobri que o problema era na Europa, não na China.” Um dia antes de chegar a Itália, algumas regiões entravam em confinamento, mas ainda seria possível atravessar o país evitando as piores áreas. Depressa tudo começou a fechar. “No primeiro dia, ainda consegui comer num restaurante, mas ao segundo dia já estavam todos encerrados e, dia após dia, via cada vez menos pessoas nas ruas e ficou mais difícil encontrar um lugar onde dormir”, recorda.
Por essa altura, a covid-19 já tinha sido declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde e alastrava um pouco por todo o mundo. “A Europa começava a ficar pior, Espanha também, por isso decidi que, uma vez que já estava ali de bicicleta, ia continuar.”
Nil interrompe o relato para se justificar. Fá-lo várias vezes ao longo da entrevista, procurando dar resposta aos comentários negativos que vai lendo nas redes sociais. “Já não havia voos para Espanha e tinha trabalhado seis anos para esta viagem. Foi muito difícil desistir. Além disso, naquela altura, as pessoas diziam que, talvez depois de quinze dias de confinamento, tudo iria melhorar. Por isso, tinha esperança que a situação melhorasse com o tempo.”
Relembra ainda que “passava os dias inteiros sozinho”, a pedalar, maioritariamente fora das cidades, e que “só interagia socialmente para comprar comida nos supermercados” e chegar ao alojamento. “Não senti que estava a fazer alguma coisa de errado”, assume.
Mais de 25 mil quilómetros em dez meses
Decidido a seguir viagem, Nil continuou por onde as fronteiras se iam abrindo. Às portas da Croácia, impedido de entrar (haveria de visitar o país mais tarde, quando as medidas restritivas relaxaram um pouco por toda a Europa), percebeu que nunca chegaria a Singapura. Por ali, em direcção a Este, as fronteiras fechavam-se mais e mais.
“Para continuar a pedalar, decidi ir em direcção ao Norte”, recorda. Polónia, Alemanha, Dinamarca e, depois, Suécia. “Foi um choque. Depois de dois meses na Europa Central, sempre sozinho, tudo muito depressivo e vazio, sem gente nas ruas a não ser nos supermercados, entrei na Suécia e os restaurantes estavam abertos, os bares tinham muita gente. Deu para aproveitar um pouco mais.”
Já a Noruega, conta, foi “a melhor parte da viagem”, graças às paisagens. “Parece outro planeta. Estava tão impressionado.” As montanhas cobertas de neve, os fiordes, os veados logo ali “como nos filmes”. Em Junho, chegava ao Cabo Norte, o ponto mais a norte da Europa continental. “Foi uma grande conquista para mim. Senti-me muito orgulhoso.” Ainda pensou partir daí em direcção a casa, mas os números começavam a estabilizar e a Europa relaxava as medidas restritivas. O que tinha sido impossível em Abril podia agora ser visitado.
A viagem foi sendo relatada, pedal a pedal, na conta de Instagram @nilbiketrip2020. De dia em dia, de quilómetro em quilómetro, Nil acabou por percorrer mais de 25.700 quilómetros, atravessando 43 países ao longo de 306 dias.
Primeiro desceu pelos países do Báltico, depois a Bielorrússia, o momento “mais exótico” da viagem. “Ninguém fala inglês e é tão diferente. Tudo está escrito em cirílico e foi um pouco difícil adaptar-me, apesar de ter trabalhado fora este últimos anos, na Ásia, na América e em África”, aponta. “Até no supermercado e nos restaurantes era difícil encontrar alimentos básicos, como arroz, vegetais, coisas simples.” Devido à má qualidade das vias, ficou preso no meio da estrada devido a um problema na bicicleta e teve de pedir boleia a uma família local. “Levaram-me à cidade, onde pude arranjar a bicicleta e depois conduziram-me de volta, para almoçar com a família toda.” Como não falavam inglês, comunicavam através do tradutor do telemóvel, gestos e imagens.
Na Moldova, teve de atravessar as fronteiras não reconhecidas internacionalmente do autoproclamado país de Transnístria e só não pagou multa por ter ficado mais tempo do que o permitido porque os cartões de crédito internacionais não funcionam ali. Seguiu pela Roménia, Bulgária, Turquia. Por esta altura já tinha decidido que, se não ia a Singapura, então uniria em bicicleta os quatro pontos mais extremos da Europa continental, para ir “adicionando desafios à viagem”. O seguinte era Istambul, ponta Este, onde ficou “desapontado” ao encontrar uma cidade “mais conservadora” e “menos internacional e simpática com estrangeiros” do que aquela que tinha descoberto noutra viagem de bicicleta, em 2013, quando se tornou uma das suas “cidades favoritas”.
E continuou pela Grécia, Macedónia, Sérvia (onde um polícia o parou no meio da auto-estrada, não por ir numa via interdita a bicicletas – mas mais segura, devido ao número de cães vadios nas outras estradas – mas para lhe oferecer água, dois dedos de conversa e guarida), Kosovo, Albânia, Montenegro, Croácia. Em Itália, já encontrou restaurantes abertos e gente nas ruas, ainda que de máscara. Propôs-se a coleccionar países e cidades-estado: Vaticano, São Marino, República Checa, Suíça, Liechtenstein, Áustria, Países Baixos, Bélgica. Pedalaria agora por todos os países da Europa continental.
Do Porto a casa
Perto de Paris, já França entrava num segundo confinamento, foi mandado parar pela polícia. “Disse que estava a voltar para casa, Espanha, a mais de mil quilómetros de distância, e eles deixaram-me ir.” Mas, antes, faltava ainda chegar ao cabo da Roca, já em Portugal, e depois descer até Punta de Tarifa, para completar os quatro extremos antes de regressar a Barcelona.
Achou o centro do Porto “bonito”, apesar de ter chegado num fim-de-semana com tudo encerrado depois das 13h. Por Lisboa passou “muito rápido”. O vento não estava de feição, apanhou um pouco de frio e as estradas podiam estar em melhores condições, confessa. Mas esta também não era uma viagem de passeio, com ou sem covid no caminho. “A minha prioridade era pedalar. Se parava num sítio era para descansar, dormir e comer. Depois aproveitava para dar uma caminhada quando ia comprar comida.”
Ainda assim, teve tempo de visitar alguns dos lugares mais icónicos das cidades por onde passava. E foi um “choque” tirar fotografias praticamente sozinho junto à Torre Eiffel, em Paris, à Basílica de São Pedro, no Vaticano, ou na Porta de Brandeburgo, em Berlim. “Normalmente vês pessoas na rua depois do trabalho em Amesterdão, toda a gente fica nas ruas a socializar e a beber com outras pessoas. Mas, desta vez, estava completamente vazia. Parecia uma aldeia e não a capital.” Se, por um lado, não teve de partilhar os lugares com as habituais hordas de turistas, por outro, sentiu falta “de toda a parte social” normal de uma viagem.
Foi “mais triste que positivo”. “Nunca estive calmo. Sempre preocupado com a minha família, em Espanha, comigo e com as pessoas à minha volta.” Mas não se arrepende de ter continuado viagem. “Desta vez foi a covid, mas quando planeias algo na vida há sempre alguma coisa que acontece e que te obriga a mudar e a adaptar.”
Chegou a Barcelona a 28 de Dezembro, numa altura em que estava já implementado o recolher obrigatório e a interdição de circular entre regiões, com ameaça de novo confinamento. “Vi os meus avós a dois metros de distância na rua”, recorda. Em Fevereiro, regressa ao trabalho. E Singapura? “Deixo a porta aberta, tudo pode acontecer. Por certo, não este ano nem no próximo, mas quem sabe daqui a três anos volte a tentar fazer essa viagem.”