João Gouveia: “O aumento da mortalidade tem que ver com dificuldades de tratamento”

O presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos alerta para a falta de camas e garante que há escolhas difíceis que já estão a ser feitas nos hospitais.

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O avanço da pandemia pode levar a uma necessidade de camas de cuidados intensivos na ordem das 700. Isso é possível de comportar?
É comportável com muitos ajustes e muitos sacrifícios e muita mudança de estrutura. Temos 1100, 1200 camas de medicina intensiva que têm de dar resposta a covid e a não-covid. Todos os dias estamos numa tentativa de expansão máxima ou supramáxima nos diferentes hospitais. Temos 672 camas para covid e esse número de 700 obriga a que parte da resposta não-covid seja mais sacrificada e que haja ainda uma maior expansão da medicina intensiva.

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O avanço da pandemia pode levar a uma necessidade de camas de cuidados intensivos na ordem das 700. Isso é possível de comportar?
É comportável com muitos ajustes e muitos sacrifícios e muita mudança de estrutura. Temos 1100, 1200 camas de medicina intensiva que têm de dar resposta a covid e a não-covid. Todos os dias estamos numa tentativa de expansão máxima ou supramáxima nos diferentes hospitais. Temos 672 camas para covid e esse número de 700 obriga a que parte da resposta não-covid seja mais sacrificada e que haja ainda uma maior expansão da medicina intensiva.

Haverá doentes não-covid que não terão lugar nos cuidados intensivos?
Não podemos escolher um doente por ele ser covid ou não-covid. Temos doentes que têm doenças e que necessitam da medicina intensiva, se estiverem em risco de falência de órgão com capacidade de recuperação. Neste caso da covid, temos um problema que é ser uma doença de transmissão muito fácil e obriga-nos a ter estes doentes separados dos outros. É necessário fazer isolamentos por quartos, ter grupos de doentes e é mais complicado em termos de equilíbrio entre assistência a doentes covid e não-covid. Se tivermos 700 doentes covid em medicina intensiva, a nossa capacidade de ter doentes não-covid vai ser menor. Mas com o lockdown aquilo a que assistimos em Março foi a uma redução franca da procura por parte de outros doentes — tem uma parte má, mas há uma parte que é lógica, pois há menos circulação, menos acidentes, menos traumas, menos necessidade de medicina intensiva.

O confinamento pode ajudar a reduzir a pressão nos cuidados intensivos. Mas quanto tempo demorará até se sentir esse efeito?
As perspectivas dadas por Manuel Carmo Gomes [epidemiologista], na reunião do Infarmed, eram que mesmo em Fevereiro não conseguiríamos ter níveis pandémicos que nos dessem algum descanso. Estamos com um recorde de casos e com R superior a 1. Vamos ter de reduzir a capacidade de transmissão e reduzir os números. Só depois disso é que podemos começar a ficar um bocadinho mais descansados. Em termos de cuidados intensivos, temos outro problema: estes doentes aparecem-nos sete a dez dias após o diagnóstico e ficam mais tempo na medicina intensiva do que um doente normal. Portanto, vamos ter ainda mais doentes do que temos agora e vamos ter dificuldade em escoá-los posteriormente. Antes de fins de Fevereiro não teremos alívio da pressão na medicina intensiva.

Não estava a haver uma melhoria da duração dos internamentos em cuidados intensivos em relação a Março e Abril?
Existiu em determinada altura e, neste momento, vai deixar de existir. Aprendemos a manejar melhor estes doentes da primeira para a segunda vaga, tivemos um medicamento que podia alterar a história natural da doença, a dexametasona, e conseguimos perceber que havia doentes que conseguíamos tratar sem a necessidade de ventilação mecânica invasiva. Com este número tão grande de doentes, acabam por ficar na medicina intensiva apenas os mais graves, aqueles que não responderam tão positivamente à dexametasona ou precisam de ventilação mecânica e que estarão mais tempo internados. Neste momento, também temos um aumento da mortalidade, o que tem que ver, entre outras coisas, com as dificuldades de tratamento. Temos muitos doentes, mais graves e dificilmente conseguimos acomodá-los nas melhores condições.

E tem que ver com diferenças de perfil dos internados?
Provavelmente, ainda não temos os dados suficientes. Temos doentes mais jovens e outra vez a obesidade a aparecer como o factor de risco mais preponderante.

Os médicos de cuidados intensivos têm muitas vezes de tomar decisões sobre quem salvar. As orientações já dadas são para, em caso de necessidade de atribuir prioridades de tratamento, ser dada prioridade aos doentes que podem recuperar para uma vida normal (parecer do colégio especialista de medicina intensiva). Com a pressão nos cuidados intensivos, a pergunta é se estas escolhas já estão a ser feitas.
Em medicina intensiva, fazemos escolhas diárias de admissão e manutenção. O objectivo é tratar os doentes com falência de órgão, ou em risco disso, com capacidade de recuperação para uma vida normal ou um patamar semelhante ao que se encontrava. Isto é o nosso dia-a-dia. O que acontece nas situações em que temos uma procura que excede os recursos, ou seja, em que entramos numa situação de catástrofe, é que temos uma responsabilidade não só perante o doente individual, mas perante toda a comunidade e há uma necessidade equitativa dos recursos e de justiça distributiva. Isso obriga-nos a fazer um shift e não tratar o doente individualmente, mas pensar qual é o melhor retorno dos recursos parcos que existem — escolher entre dois ou três doentes quem é que tem melhores hipóteses de beneficiar deles. É um princípio global de gestão e medicina de catástrofe que a Ordem achou, e bem, que se devia recordar agora. A SPMI tem um documento preparado desde o início da pandemia para publicar exactamente sobre uma das maneiras de operacionalizar esta triagem de catástrofe.

Esta triagem já está a ser feita desta forma?
Não, ainda não está a ser feita de forma declarada ou aberta. Não quer dizer que pontualmente não seja feita num ou noutro sítio. Há sempre necessidade de triagem e há sempre doentes a quem será recusada a admissão a serviços de medicina intensiva, mesmo que tivéssemos imensas vagas, porque não têm forma de beneficiar dela, seja por serem muitos graves ou por não estarem suficientemente doentes para poder beneficiar.

O Norte e o Porto têm mantido sempre níveis muitos altos de infecção, mas mostraram até capacidade de receber doentes de outras zonas do país. Como explica isso? Os hospitais do Porto organizaram-se melhor para esta situação? 
O Norte teve uma primeira vaga muito mais significativa do que o Sul e com isso houve uma capacidade de organização que aconteceu. Mais a sul não houve esse choque e a necessidade imperiosa de escalar tanto a resposta. Apesar de tudo, ultimamente as respostas são semelhantes. O Norte conseguiu duplicar a capacidade de medicina intensiva e a região de Lisboa e Vale do Tejo mais 40%. Agora já estamos praticamente equivalentes. Evidentemente, há regiões que são mais frágeis, como o Alentejo, que tem menos capacidade instalada e mais dificuldade em conseguir aumentar a capacidade. Teve um aumento, mas não é suficiente, se continuarmos a ter uma procura como o que foi projectado na terça-feira.

Catorze mil novos casos diários.
Sim. Isso faz-me lembrar uma tirada política célebre: “É só fazer as contas!” Se tivermos 1% de doentes em medicina intensiva com 14 mil casos diários, são 140 novos doentes por dia para mil camas — em cerca de sete dias estão esgotadas. Só que neste momento já temos 800 ocupadas. O que é que ainda não perceberam?!

Qual é a capacidade total de cuidados intensivos dos privados? 
Depende. Os maiores grupos têm medicina intensiva com capacidade, alguns até com idoneidade e capacidade formativa e com condições de segurança para terem doentes covid. Neste momento, há acordos no Norte e na região de Lisboa e Vale do Tejo para poder haver colaboração e tem havido.

A solução pode passar pelos privados ajudarem mais nesta altura?
Passa pela disponibilidade e uso de todos os recursos, pelos privados também e isso está a ser feito. Mas os privados também têm doentes próprios que também ocupam vagas e nem todos os privados têm condições de segurança para poderem ter doentes covid. Acho que a situação passa por alguns privados participarem no tratamento dos doentes covid. Estamos numa situação em que isso é necessário e faz sentido, mas principalmente deveriam ser utilizados para tratar os doentes não-covid de maneira a que estes não sejam esquecidos.

Faltam ou podem vir a faltar profissionais nos cuidados de saúde intensivos para fazer face a 14 mil casos diários?
Faltam já agora, sem ter os tais 14 mil casos. Há também muitos profissionais infectados. O que se pode fazer? Uma solução é a paragem da actividade assistencial não urgente e a alocação de pessoas para esses postos de trabalho. Nem toda a gente tem formação para a medicina intensiva, mas pode ir trabalhar para outras áreas e libertar pessoas para medicina intensiva. Temos de perceber que temos de adoptar modelos de trabalho diferentes, uma espécie de um polvo com vários braços. Um médico vai ter de ser responsável por mais de dez, 12 doentes em intensivos, o que não é o habitual, nem desejável, mas nesta situação não há outra hipótese.

Deve-se ir buscar profissionais aos privados através de requisição civil?
Depende. Se tivermos serviços de hospitais privados que são capazes de dar resposta e se articulam, sim senhor, não há necessidade. Se isso não se verificar, faz sentido esses profissionais virem trabalhar para o SNS. Estamos a falar de um problema que é global. Tem de haver uma solidariedade tanto do ponto de vista das estruturas do privado e do público, como entre os profissionais. Viu-se na primeira vaga e até me impressionou o voluntarismo de colegas de outras especialidades. Neste momento, as pessoas estão muito cansadas, estamos todos fartos desta epidemia e infelizmente não se verifica a mesma solidariedade e o mesmo espírito. Atribuo isso ao cansaço.

Quando ouvimos médicos com prática hospitalar e de linha de frente e epidemiologistas, parece que há uma diferença de perspectivas. Para uns, o melhor é fechar, fechar, fechar para garantir que menos gente fica doente e menos gente morre; outros parece que funcionam numa lógica de modelos e de ver como a epidemia evolui. Há esta tensão na classe médica?
Tensão não, perspectivas diferentes. Para nós é muito mais fácil e lógico defender medidas mais restritivas. Quem trata estes doentes percebe que não quer ter ninguém naquelas circunstâncias. 

O que pensa da abertura de hospitais de campanha? Pode ser uma boa ajuda ou não serve de muito?
Servem principalmente para doentes de baixa gravidade, alguns que até provavelmente podiam estar em casa, se tivessem condições sociais e habitacionais. 

Podem ajudar a dar elasticidade aos hospitais.
Exactamente. Neste momento, estamos muito preocupados com os bloqueios de entrada: não ter camas para receber os doentes. Uma razão é por não conseguirmos transferir os doentes. As enfermarias estão demasiado cheias. Foi um dos problemas que aconteceram com os fins-de-semana de Natal e Ano Novo.