A remuneração da eletricidade produzida com resíduos
A eliminação ou redução substancial do apoio à produção de eletricidade com resíduos terá um efeito invisível nas tarifas de eletricidade, mas terá um efeito muitíssimo notório nas tarifas da gestão de resíduos com todas as consequências previsíveis que daí advirão, nomeadamente ao nível do desempenho ambiental.
A questão da remuneração da eletricidade produzida com resíduos voltou ao debate público e, infelizmente, da pior maneira possível: de modo atabalhoado, parcelar e, muitas vezes, desinformado.
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A questão da remuneração da eletricidade produzida com resíduos voltou ao debate público e, infelizmente, da pior maneira possível: de modo atabalhoado, parcelar e, muitas vezes, desinformado.
Na gestão de resíduos urbanos, a eletricidade é um subproduto do serviço público de gestão dos resíduos que a sociedade produz; tal como os recicláveis ou o composto produzido a partir da matéria orgânica biodegradável contida nos resíduos urbanos. Num país onde as tarifas de gestão de resíduos pagas pelos municípios e cidadãos são muito baixas em termos europeus, as receitas da venda dos subprodutos, incluindo a eletricidade, têm sido fundamentais a todo o setor da gestão de resíduos para financiar a gestão dos resíduos em Portugal. Isso aplica-se a todo o setor, sem exceção.
Conscientes desse facto, as associações representativas da totalidade do setor andam há anos a pedir que as regras de remuneração da energia sejam revistas, criando uma base de remuneração clara, transparente e que valorize com justiça todas e cada uma das formas de produção de energia a partir dos resíduos, de acordo com o que são as externalidades positivas de cada linha tecnológica: biogás de aterro, biogás de digestão anaeróbia e incineração dedicada. O setor não tem pedido outra coisa que não seja um quadro de estabilidade e previsibilidade nesta área tão relevante para o seu financiamento. O setor, não só fez repetidas chamadas de atenção para o problema, como fez propostas concretas para debater com os responsáveis, que infelizmente não tiveram eco. É por isso falso que haja uma parte do setor da gestão de resíduos que quer ver o seu problema resolvido à revelia do restante setor.
É igualmente falso, e mesmo malicioso, que se alimente a ideia de que as remunerações da energia (o mesmo se pode aplicar à venda de recicláveis ou de composto) revertam para as empresas, como se a gestão de resíduos fosse uma atividade comercial como qualquer outra e não uma atividade de serviço público essencial como é. Estas receitas, dado o estatuto não lucrativo das empresas gestoras de resíduos urbanos e/ou a sua condição de empresas reguladas, têm revertido, e continuarão a reverter, para o cidadão, proporcionando-lhe um melhor serviço de gestão dos resíduos ao mais baixo custo e contribuindo para o financiamento de projetos avançados de tratamento de resíduos.
Contribuir ou não para o financiamento do setor da gestão dos resíduos por via da valorização dos seus subprodutos é, naturalmente, uma decisão política. Há países onde a gestão de resíduos urbanos em alta é paga quase exclusivamente pela tarifa de tratamento de resíduos, paga pelo cidadão. Porém, nesses países, essa tarifa é tipicamente o triplo dos 31,67 euros por tonelada pagos em Portugal (ERSAR, RASARP 2018). É para esse modelo que se pretende evoluir? Foram avaliadas as consequências dessa evolução, particularmente num período de profunda crise económica e social? A eliminação ou redução substancial do apoio à produção de eletricidade com resíduos terá um efeito invisível nas tarifas de eletricidade, dado o peso diminuto da eletricidade dos resíduos na produção total de eletricidade (menos de 1,5%), mas terá um efeito muitíssimo notório nas tarifas da gestão de resíduos com todas as consequências previsíveis que daí advirão, nomeadamente ao nível do desempenho ambiental.
É igualmente uma decisão política saber qual a fonte que deve financiar o adicional ao valor de mercado dessas tarifas. Porém, não há nada de estranho que seja o Fundo Ambiental a fazê-lo, dado que para este Fundo contribui, avultadamente e até agora sem benefício visível, o sistema de gestão de resíduos através da Taxa de Gestão de Resíduos. Esta Taxa representará este ano um valor que se aproximará dos 34 milhões de euros e aumentará todos os anos até atingir cerca de 115 milhões de euros em 2025. Qual é o problema que uma parte reduzida desse pagamento seja devolvido ao setor na remuneração de um dos seus subprodutos? O que se reclama é que seja aplicável a todas as formas de produção de eletricidade: biogás de aterro, biogás de digestão anaeróbia e incineração, de acordo com a respetiva valia ambiental própria.
É maldosamente demagógico falar dos benefícios ou malefícios da incineração de resíduos sem colocar na mesma discussão o envio de resíduos para aterro que foi sempre, sublinhe-se, o destino de mais de 50% dos resíduos urbanos produzidos em Portugal. O argumento que tem sido avançado de que o que está a limitar a reciclagem são os 20% dos resíduos urbanos que vão para incineração e não os quase 60% que vão para aterro é, evidentemente, absurdo e dispensa qualquer argumento adicional.
É igualmente maldosamente demagógico o argumento de que a incineração contribui para a emissão de gases com efeito de estufa porque lá são “queimados recicláveis”. Se a recolha seletiva de resíduos urbanos está em cerca de 21% (20,4% em 2018 – APA), onde é que se espera que se tratem os restantes 79% dos resíduos? Será que se defende que vá tudo para aterro sanitário?
A valorização energética do biogás de aterro é um fator relevante de redução dos gases com efeito de estufa, porque evita parcialmente a emissão de metano para a atmosfera, um gás com um potencial de aquecimento global 23 vezes o do CO2; a incineração de resíduos reduz a emissão de gases com efeito de estufa porque desvia resíduos de aterro, evitando as respetivas emissões, e porque produz eletricidade maioritariamente renovável, com potência garantida, que é essencial para substituir a produção fóssil de eletricidade.
É por isso com muita preocupação que a generalidade dos “stakeholders” do setor, incluindo os municípios, as empresas e suas associações, e com a autoridade moral de quem há anos que reclama uma abordagem transparente e participada para este problema, assistem a esta evolução incompreensível de alguns elementos essenciais à estabilidade do setor.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico