Dever de responsabilidade e obrigação ética

A descoberta da vacina será um ponto de viragem, mas há requisitos indispensáveis para o seu sucesso. Todo o processo é uma Responsabilidade do Estado, não numa perspectiva ideológica de esquerda versus direita, mas como missão indeclinável seja qual for o governo. E uma Obrigação Ética para assegurar equidade no acesso, eficácia e rapidez na sua disponibilização à população sem discriminação.

O combate à pandemia covid-19 tem duas dimensões: contenção da doença pela redução do contágio – o célebre martelo para achatar a curva da disseminação tão popular no princípio – e a vacinação, instrumento fundamental para obter a imunidade de grupo – herd immunity –, a qual acabaria por anular o vírus. Mais segura, eficaz e decente que as tentativas de disseminação na comunidade para obter essa imunidade geral. O que se passou na Suécia – e recordo a dignidade e coragem, statemanship, do monarca sueco ao assumir o falhanço da política seguida no seu país –, o qual foi diferente dos EUA e do Brasil onde prevaleceram incoerência, falta de liderança e negacionismo dos políticos.

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O combate à pandemia covid-19 tem duas dimensões: contenção da doença pela redução do contágio – o célebre martelo para achatar a curva da disseminação tão popular no princípio – e a vacinação, instrumento fundamental para obter a imunidade de grupo – herd immunity –, a qual acabaria por anular o vírus. Mais segura, eficaz e decente que as tentativas de disseminação na comunidade para obter essa imunidade geral. O que se passou na Suécia – e recordo a dignidade e coragem, statemanship, do monarca sueco ao assumir o falhanço da política seguida no seu país –, o qual foi diferente dos EUA e do Brasil onde prevaleceram incoerência, falta de liderança e negacionismo dos políticos.

E se o combate foi e é um dever do Estado, a sua estratégia é uma responsabilidade de quem governa para assegurar eficácia e equidade. E a diferença na qualidade e robustez da resposta dependeu mais da organização da acção e recursos que condicionaram prontidão e acção prolongada e duradoura, do que do modelo organizacional dos sistemas de Saúde.

Vejamos, pois, como é a nossa situação neste início da segunda semana de Janeiro de 2021. Usarei, como habitualmente, os gráficos de José Aires de Sousa​ baseados nas estatísticas internacionais e nacionais oficiais e já referidos noutros textos. Infelizmente, a realidade é dura e muito difícil, como se demonstra no Quadro I. A maioria dos países analisados – a Suécia não está incluída – parecem estar a controlar a disseminação da doença, estão já numa trajectória descendente das curvas, com duas excepções: Portugal e o Reino Unido. Que haverá de comum entre os velhos aliados? Permissividade na decisão política com alívio nas restrições durante o período de Natal, muito pior em Portugal, onde foram praticamente reduzidas ao mínimo na época de Natal, permitindo e facilitando viagens no país mesmo entre zonas de maior risco, a que se terá associado displicência na conduta dos cidadãos. Inevitável perante a falta de exigência do discurso político. Incoerência e falta de rigor na comunicação política, como aliás acentuou o líder da oposição trabalhista na Câmara dos Comuns, e comentadores nacionais.

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Quadro I – Situação até 07.01.2021

O incremento registado nos dias 8 e 9 não está reflectido no gráfico e agravou ainda mais a situação portuguesa, onde a curva mantém tendência ascendente, a pior de todas, assinalada a vermelho no quadro em que se evidencia o trend nos últimos sete dias. De facto, no discurso governamental prevaleceu o temor de decisões difíceis, a procura da simpatia popular, menos informada e nada exigente, e o excesso de confiança como em Julho e Setembro de 2020. E subvalorizou-se o maior risco de contágio que resulta desta nova estirpe. Assim será difícil chegar ao bom porto!

A descoberta da vacina será um ponto de viragem, mas há requisitos indispensáveis para o seu sucesso. Universalidade, equidade e rapidez na sua disponibilização à população são indispensáveis. Porque as vacinas são um bem necessário e, já se percebeu, raro, face à dimensão previsível da necessidade global e às contingências inerentes à produção industrial e distribuição. Todo o processo é uma Responsabilidade do Estado, não numa perspectiva ideológica de esquerda versus direita, mas como missão indeclinável seja qual for o governo. E uma Obrigação Ética para assegurar equidade no acesso, eficácia e rapidez na sua disponibilização à população sem discriminação, como aliás acentuou recentemente o Papa Francisco, ao confirmar que iria ser vacinado, condenando a loucura negacionista nas redes sociais e o mau exemplo de alguns responsáveis políticos.

E se o início simultâneo da vacinação na UE foi um acto simbólico, rapidamente se percebeu que as cartas não são iguais para todos. Os países possuem uma opção de negociação e compra directas com os fornecedores em simultâneo com a encomenda global da Comissão Europeia, como o confirmou a directora-geral da Saúde na sua habitual conferência de imprensa, e alguns outros tê-lo-ão feito.

Vacinar em massa e rapidamente deveria ser o mote! É decisivo, mas infelizmente, nas circunstâncias actuais, sendo necessário não é suficiente, deve coexistir com uma política de contenção que é absolutamente indispensável. Regresso ao martelo poderoso que é o confinamento alargado mas racional e bem fundamentado cientificamente!

Sobre a estratégia definida para a vacinação, deixo algumas observações. Primeiro, o meu receio que prevaleça o preconceito ideológico que deixou o SNS isolado quando se impunha abertura e capacidade para uma mobilização global de recursos e competências nacionais. A nomeação de uma task force só fará sentido se tiver independência, competência para mobilizar os recursos disponíveis na sociedade e responsabilidade, escapando ao autismo e preconceito ideológico dominante no Ministério da Saúde. Confesso a minha perplexidade perante três situações – o tal palito no bolo, figura de estilo que usei na minha vida académica e profissional e transbordou para estes artigos.

Primeiro, o secretismo da escolha do local de armazenamento das vacinas, rapidamente identificado. Depois, o episódio rocambolesco de Évora, com duas forças de segurança dependentes do mesmo ministério reclamando a segurança do transporte das vacinas! Porque não foi atribuída essa responsabilidade às Forças Armadas nacionais, como na Europa, EUA e Israel, e que até integram, e muito bem, a task force?

A opção seguida para a vacinação difere da maioria dos países europeus que nos são próximos. Em artigo anterior lamentei que tivesse sido esquecido o valor simbólico de vacinar em primeiro lugar cidadão anónimo e mais velhos, pois a nossa missão como médicos e profissionais de saúde é o serviço, não a protecção corporativa que o gesto infelizmente simbolizou para gáudio do circo mediático montado pelo Governo. Surpreendeu-me declaração não refutada de que o coordenador da task force não responderia sobre a decisão de vacinar militares mais jovens. De quem a responsabilidade? Como espero que não se ostracizem médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde que trabalham exclusivamente nos serviços não públicos. Filhos de um deus menor na ortodoxia vigente? Os planos inglês e alemão parecem-me mais claros e menos abertos às excepções e particularismos.

Em simultâneo com a prioridade aos profissionais de saúde e cuidadores, é o critério etário que deveria prevalecer – a idade é a variável dominante na definição do risco letal da infecção pelo SARS-CoV-2. Como, aliás, personalidades de idoneidade indiscutível têm acentuado. A estratégia seguida nestes dois países para vacinar o mais rapidamente possível a maior quantidade de população, como Israel está a fazer com tanto sucesso, parece-me um exemplo que deveria estimular urgência nos nossos responsáveis. Os alemães e ingleses, como os israelitas, organizaram locais próprios para o efeito, pavilhões, hospitais de campanha, e outros, mobilizaram estruturas como as farmácias capacitando-as para o efeito, dinamizaram voluntários e impuseram metas ambiciosas.

Porque não suscitamos a cooperação de profissionais de saúde reformados, médicos e enfermeiros, porque insistimos em centrar toda esta intervenção no SNS? Particularmente quando os principais hospitais estão no limite das suas capacidades, os centros de saúde têm um lastro de necessidades médicas em atraso nos seus utentes? Porquê misturar o exercício de tratar a covid-19 com a vacinação contra o vírus SARS-CoV-2? E os estudantes de Medicina, cuja contribuição potencial tem sido tão pouco referida, e que poderiam ser tão úteis no encaminhamento burocrático, acompanhamento e vigilância dos cidadãos pós vacinação?

Espero que tudo esteja a ser feito! E que os bons exemplos seriam seguidos, para além da ortodoxia e do preconceito.