“É importante uma acção rápida para conter ao máximo a transmissão da nova variante”
A cientista portuguesa Sónia Gonçalves trabalha no Instituto Wellcome Sanger, em Inglaterra, que já fez 30% das sequenciações genéticas do SARS-CoV-2. Explica-nos por que razão a variante encontrada no Reino Unido é mais transmissível. Temos de confinar já? “Parece-me que é a decisão acertada.”
No Instituto Wellcome Sanger (no Reino Unido), Sónia Gonçalves é a responsável pela coordenação de um processo que envolve as amostras da covid-19. Esta operação começa na recolha das amostras nos laboratórios de testes, passa pelo seu processamento e sequenciação e vai até à publicação dos dados genómicos. Não é uma tarefa fácil: por semana, chegam entre 300 mil e 400 mil amostras a este instituto. E, desde o início da pandemia, já recebeu 14 milhões de amostras.
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No Instituto Wellcome Sanger (no Reino Unido), Sónia Gonçalves é a responsável pela coordenação de um processo que envolve as amostras da covid-19. Esta operação começa na recolha das amostras nos laboratórios de testes, passa pelo seu processamento e sequenciação e vai até à publicação dos dados genómicos. Não é uma tarefa fácil: por semana, chegam entre 300 mil e 400 mil amostras a este instituto. E, desde o início da pandemia, já recebeu 14 milhões de amostras.
“O Sanger tem uma grande capacidade de processamento de amostras em larga escala: temos plataformas com robôs e está tudo automatizado para fazer a selecção das amostras positivas e a sequenciação genética”, nota a bióloga. Só neste instituto, que faz parte do Consórcio de Genómica de Covid-19 do Reino Unido (que junta vários centros de sequenciação do país), estão mais de 100 pessoas neste trabalho de vigilância genómica – a sequenciação de uma percentagem das amostras para informar sobre as alterações na evolução do vírus. Colabora ainda com as agências de saúde pública de Inglaterra, da Irlanda do Norte, do País de Gales e da Escócia.
Ao longo da entrevista, Sónia Gonçalves faz-nos um retrato da nova variante encontrada no Reino Unido, explica-nos porque que é que se diz que é mais transmissível e salienta-nos a importância da sequenciação genética nas medidas da pandemia. “A identificação da nova variante [no Reino Unido] foi possível devido ao nível de sequenciação que fazemos aqui [no Sanger] e foi a razão pela qual as autoridades e o Governo decidiram colocar o país em confinamento.”
Qual é o papel da nova variante identificada no Reino Unido no aumento de casos de covid-19?
Esta nova variante foi identificada pela primeira vez na zona do Sul de Inglaterra em Setembro. Entre Novembro e o princípio de Dezembro, estavam-se a monitorizar altos níveis de infecções nessa zona e foi observado que uma variante em particular era muito frequente. Nessa altura, essas zonas [e Londres] já estavam com um nível muito elevado de restrições e aquilo que se observava é que os casos continuavam a aumentar. Esta variante é a responsável pelo aumento recente de casos que tivemos no Reino Unido e tem, de facto, dominado esses novos casos. Tem havido imensos estudos à volta da variante, que têm demonstrado que é mais transmissível. É mais fácil espalhar-se e contagiar outras pessoas do que as variantes anteriores que estavam em circulação.
Quais são mesmo as provas de que é mais transmissível?
Esta variante aumenta o número R – o número de pessoas que um indivíduo pode infectar – entre 0,4 a 0,7. Portanto, o número de pessoas infectadas vai aumentar. Há uma série de provas que permitiram concluir que esta variante é 50 ou 70% mais transmissível. Ao juntarmos dados da vigilância genómica, dados de testes feitos às comunidades e modelos estatísticos avançados permitiu-nos compreender que esta variante se espalha com muita facilidade.
Outra informação que o veio confirmar foram os testes [de diagnóstico] que se fazem nos laboratórios e que usam três genes diferentes para amplificar o genoma do SARS-CoV-2. Em Novembro, quando o aumento do número de casos no Sul de Inglaterra e Londres começou, os laboratórios verificaram que havia uma grande percentagem de amostras que falhava essa amplificação de um desses genes, o gene S. Quando se foram buscar os dados de sequenciação dessas amostras, praticamente todas eram da nova variante.
Embora alguns estudos tenham sugerido que não aumenta a gravidade da doença, ao ser mais transmissível também vai aumentar as hospitalizações e consequentemente a mortalidade…
Exactamente, estudos preliminares concluíram que parece não causar mais severidade na doença, mas ao provocar mais casos vai aumentar o número de hospitalizações e, inevitavelmente, o número de mortos.
Há amostras de genomas com esta variante desde Setembro, porque só se viu agora que é mais transmissível?
Não podemos tirar conclusões com base em poucos genomas, precisamos de ter uma representatividade em termos [de genomas com] a variante. Até podemos identificar a variante e isso aconteceu em Setembro, mas depois é preciso verificar que, de facto, essa variante está a aumentar na população ou que os casos não diminuem numa situação de confinamento. É todo um conjunto de dados e observações que levaram à conclusão de que a variante era mais transmissível. Em Setembro começaram a surgir os primeiros genomas, mas também temos genomas de outras variantes. Até ser classificada com variante of concern [de preocupação, como é designada] ainda demora algum tempo, porque temos de ter um conjunto de diferentes dados a nível da sequenciação e da epidemiologia.
O facto de ser mais transmissível no Reino Unido também quer dizer que será mais transmissível em Portugal?
Penso que não haverá qualquer expectativa de o vírus se comportar de forma diferente, mas com este vírus tudo é novo e temos de ter alguma cautela nas conclusões. Sendo a mesma variante, a forma como se transmite de pessoa para pessoa será igual aqui ou noutro local.
Há cientistas que dizem que uma variante se pode comportar de forma diferente conforme a geografia e as pessoas desse sítio…
Pode haver algumas características específicas da população portuguesa, mas estou a especular. Tudo tem de ser estudado e confirmado. Neste momento, é preciso seguir todas as indicações em termos de distanciamento físico e continuar tudo o que temos vindo a fazer – e agora ainda mais. Esta variante transmite-se, de facto, de forma mais rápida.
No fundo, quando falamos de uma variante estamos a falar mesmo do quê?
Cada vez que se replica, o vírus tem mutações na sua informação genética e isto é um processo que acontece naturalmente. São erros que acontecem quando o vírus se replica e alguns deles são corrigidos e outros não, existindo depois na sua descendência. Muitas das mutações são aquilo a que chamamos mutações silenciosas, ou seja, não têm um efeito directo nas proteínas que constituem o vírus. Aqui são muito importantes as proteínas que estão na parte exterior do vírus e que são responsáveis pela ligação às células humanas.
Temos é de monitorizar algumas dessas mutações nas regiões do vírus que podem alterar a forma como interage com o seu hospedeiro humano. Desde o início da pandemia, temos vindo a monitorizar uma série de diferentes variantes, ou seja, diferentes versões do vírus. Aqui no Reino Unido há uma série de variantes em circulação, mas são de baixa frequência na população. Preocupante é quando uma dessas variantes começa a ser dominante na população e há algo nessas alterações do vírus que lhe proporciona alguma vantagem. É o que se está a passar com esta variante.
Quais são então as suas principais características?
Esta variante tem um número bastante grande de mutações comparando com o das outras variantes que estamos a monitorizar no Reino Unido. Tem um total de 23 mutações e algumas dessas mutações estão relacionadas com estas proteínas no envelope do vírus, que são muito importantes na forma como o vírus interage com a célula hospedeira. Sequenciamos tantos genomas e, normalmente, vemos novas variações a aparecer com uma frequência de uma ou duas mutações de cada vez.
Mutações da nova variante estão a dar uma vantagem ao vírus em termos da sua replicação. Seis delas são silenciosas e não causam nenhuma alteração nas proteínas e depois há 17 outras que já foram descritas noutras linhagens e que estão relacionadas com a forma como o vírus se comporta. Em termos de mutações directamente relacionadas com a proteína spike [da espícula, que é responsável pela entrada do SARS-CoV-2 nas células humanas], há uma importante que é a N501Y. Há ainda outra mutação, a 69-70del, que foi identificada em vírus que evoluem para escapar à resposta imunitária natural em alguns pacientes imunocomprometidos. Mas são precisos mais estudos e provas para compreender como o vírus se comporta.
Às vezes, as pessoas ficam preocupadas porque é uma nova variante, mas a realidade é que o vírus está sempre a mutar. Haver novas variantes é normal. O problema começa quando uma dessas novas variantes se vai tornando dominante na população, que é o que está a acontecer com esta.
Cerca de 30 países depositaram sequências associadas a esta variante e à volta de 50 já a reportaram. Pode vir a tornar-se a versão do vírus dominante não só no Reino Unido como também no mundo?
Tudo depende das medidas de controlo em cada país. Se a variante se comportar como temos verificado no Reino Unido, o que estamos a verificar aqui podemos verificar noutros países. Neste momento, é importante uma acção rápida para conter ao máximo a transmissão desta variante. Há imensos países que já iniciaram medidas em termos de viagens de pessoas vindas no Reino Unido. Nesta fase, tudo isto é extremamente importante, porque é preciso conter a disseminação desta variante e não se verificar o que está a acontecer aqui no Reino Unido. Estamos numa situação bastante complicada…
E o que pode determinar que uma variante seja mais transmissível? Além do próprio vírus, pode ser o comportamento das pessoas e a gestão da pandemia?
O factor mais importante está associado à forma como o vírus se transmite. Obviamente que isso associado a medidas menos eficazes de confinamento vai aumentar o número de casos. Estamos perante uma variante que se espalha de forma mais rápida e se medidas eficazes não forem rapidamente implementadas vai espalhar-se mais e o número de casos aumenta.
Por isso é que foi importante a identificação da variante e a partilha rápida desta informação a nível mundial. Se um país conseguir contê-la é bom para esse país, mas não resolve o problema. Este é um problema global! É muito importante que toda a informação que é gerada seja rapidamente partilhada ao mundo. Depois cabe a cada um dos países a melhor forma de gerir a pandemia.
O vírus torna-se mais transmissível devido a estas alterações na sua informação genética e na forma como se liga às células humanas, mas se tivermos restrições, usarmos máscaras ou lavarmos as mãos, impedimos a transmissão. Até agora, não há nenhuma indicação de que essas medidas não sejam eficazes quanto a essa variante. Aliás, isto reforça a necessidade de cada vez mais as aplicarmos e não baixarmos a guarda.
Alguns cientistas têm alertado que é muito fácil “responsabilizar” uma variante. A cientista Emma Hodcroft, que co-criou a Nextstrain [plataforma de bioinformática que integra genomas tornados públicos do vírus], disse no Twitter: “Politicamente, esta parece uma ‘resposta fácil’, pois uma nova variante e mais transmissível ‘não é culpa de ninguém’. Mas o SARS-CoV-2 precisa de nós para se transmitir: o nosso comportamento é um dos grandes determinantes de como o vírus se espalha”.
Essa é uma questão mais política e as autoridades de saúde pública é que decidem qual a melhor altura de introduzir os confinamentos e os níveis de confinamento. Mas, em Novembro, já estávamos em confinamento – não estávamos era em confinamento total –, porque já se estava a observar um número maior de casos. O Reino Unido tem respondido muito directamente aos dados da ciência.
Parte da comunidade científica criticou o Governo britânico por querer levantar algumas medidas no Natal. Pode ter havido uma certa relação entre essa gestão da pandemia e o aumento de casos associados a esta variante?
É difícil responder a essa pergunta. É muito difícil dizer que foi por causa de A que aconteceu B. É um cenário muito complexo em termos de como o vírus está a evoluir e da transmissão de casos. Há pessoas que defendem que poderiam ter sido tomadas outras medidas mais cedo, mas também é preciso ver se as pessoas estão a cumprir todas as medidas. Estamos todos saturados. Afinal, estamos nisto há quase um ano e vivemos uma fase muito complicada da pandemia.
Mas também há novidades boas. Temos vacinas e estão a começar a ser administradas em larga escala, embora ainda demore alguns meses até termos uma boa franja da população vacinada. Até lá, não podemos baixar a guarda! Estamos a falar desta variante no Reino Unido, mas já se fala noutras variantes, como a da África do Sul e a do Brasil [que foi detectada no Japão em passageiros vindo do Brasil]. Vão aparecer ainda novas variantes que, lamentavelmente, se transmitem com mais facilidade. Por muito que nos custe, temos de manter as medidas. É importante para nos protegermos a nós, às nossas famílias, aos sistemas de saúde e para que possamos dar algum espaço de manobra para se poder controlar a pandemia.
Quanto às vacinas, até agora a indicação é que serão eficazes nas novas variantes…
Essa foi uma das maiores preocupações assim que a variante foi identificada. Já tem havido alguns estudos e as indicações são de que as vacinas continuam a ser eficazes com estas variantes, mas penso que ainda é preciso continuar esses estudos, porque ainda só foram feitos para algumas das mutações.
Já foram identificados pelo menos 34 casos em Portugal associados à variante encontrada no Reino Unido. [Já depois da entrevista aumentaram para 72 casos.] Pode ter algum papel no aumento de casos?
É uma pergunta difícil pela simples razão de que foram identificadas essas 34 amostras, mas isso pode não ser representativo da população. Isto é, já foi identificada e está presente no país, mas não sabemos a frequência com que está na população. Pode ser um caso em que sim, pode ser uma das razões para este aumento recente de casos, mas também pode não ser.
Mas por precaução é importante confinarmos já?
Parece-me que é a decisão acertada perante este aumento de casos e uma variante em circulação que é mais transmissível.
Há outra variante que também tem vindo a preocupar, a que foi identificada na África do Sul. O que nos pode preocupar?
Também estamos a seguir essa variante, porque também já foi introduzida no Reino Unido e há medidas de restrição em termos de viagem. A África do Sul também tem um grande programa de sequenciação, o que lhe permitiu identificar a variante. Tem uma série de mutações diferentes da que foi identificada no Reino Unido, mas que também lhe conferem uma maior transmissibilidade. É uma nova variante mais transmissível e tudo o que falámos sobre a do Reino Unido aplica-se a esta.
No Instituto Sanger tem-se feito um grande trabalho de sequenciação. Já quantos genomas do vírus foram sequenciados?
No mundo, já foram sequenciados mais de 352 mil genomas, dos quais 186.253 foram produzidos pelo consórcio que integramos. Desses, foram produzidos 99.684 pelo Sanger. Em números globais, 50% das sequências produzidas a nível global foram-no pelo nosso consórcio e 30% das sequências mundiais pelo Sanger. Não há outro país com esta capacidade de sequenciação. É importante que os países aumentem a capacidade de sequenciação. Se não tivermos esta capacidade de vigilância genómica, é como andarmos um bocadinho às cegas: vemos os casos a aumentar, mas não sabemos bem o que está a acontecer. Ao sabermos exactamente o que está a acontecer, [a nível da vigilância genómica] torna-se uma ferramenta para as autoridades de saúde pública.
E têm tido bastante investimento desde o início da pandemia.
Houve um investimento inicial do Instituto Wellcome Sanger e do Governo de 20 milhões de libras em Março. Em Novembro, houve um investimento adicional de 12,2 milhões de libras do Governo. Este investimento é para todo o Consórcio de Genómica de Covid-19 do Reino Unido.
Como tem sido o seu dia-a-dia no instituto?
Este tem sido um projecto fantástico [designado Iniciativa Genómica da Covid-19 do Instituto Wellcome Sanger]. Quando a pandemia começou houve um lockdown, o instituto fechou e ficou só aberto para o processamento destas amostras e outras actividades importantes. Todas as pessoas imediatamente se voluntariaram para ajudar. Tem sido um projecto multidisciplinar e temos imensas equipas diferentes no instituto a trabalhar para conseguirmos completar os objectivos. Todas as pessoas se sentem muito orgulhosas de fazerem parte do projecto e, de alguma forma, sentem que fazem parte da resposta nacional à pandemia. Há momentos altos e baixos e é um projecto que nos ocupa imenso tempo. O facto de trabalharmos com quatro diferentes autoridades de saúde pública complica. O processamento das amostras está em velocidade cruzeiro, mas depois há toda a parte informática ou os relatórios com as conclusões.
O que é que falta saber sobre esta variante?
Da actividade que fazemos [no Sanger], é continuar a monitorização e perceber se há novas variantes que vão surgindo. Quanto mais dados temos para os modelos matemáticos, melhores serão as estimativas. Depois há estudos que estão a ser feitos por outros grupos para se perceber melhor e ter mais provas de que a variante não tem impacto na eficácia da vacina ou na severidade da doença.