Ajude os cientistas (e a si próprio) e leia esta BD sobre o fígado
Equipa de Coimbra convida-nos a responder a um questionário online antes e depois de lermos uma banda desenhada criada num projecto científico. Ao mesmo tempo que nos divertimos e aprendemos, pretende-se avaliar a eficácia deste método para comunicar a doença do fígado gordo não-alcoólico, que afecta 25% da população mundial.
Interpelam-nos logo na primeira frase do livro com uma pergunta – “sabe o que é o fígado?” Mesmo que tenhamos uma ideia, o livro de banda desenhada Um Fígado Equilibrado é Meio Caminho Andado! permite-nos ficar a conhecer melhor este órgão e como se previne e procura travar o avanço de uma doença hepática que uma em cada quatro pessoas têm no mundo: o fígado gordo não-alcoólico.
É silenciosa: pode passar despercebida durante anos e resultar em danos graves no fígado, como cirrose e cancro. “O acumular excessivo de gordura no fígado é causado por dietas pouco saudáveis e estilos de vida sedentários. Acha que pode estar em risco?”, voltam a interpelar-nos.
Embora estes problemas possam existir em pessoas com um peso ideal, com frequência o fígado gordo não-alcoólico (NAFLD, na sigla em inglês) está associado à obesidade e diabetes, dois dos seus factores de risco como teremos oportunidade de perceber melhor através desta banda desenhada disponível no site do projecto e dos seus protagonistas: Jaime, Jorge, Victória e Alice. “Ainda falta muito para chegarmos a casa da tia Alice?”, pergunta Victória (Vic) no carro, onde seguem o seu pai, Jorge, e o avô Jaime, que tem cirrose de origem alcoólica.
“Trouxeste o monitor de glicose que te pedi, Jaime? Preciso mesmo dele para controlar a diabetes”, diz Alice quando o irmão chega. “Trouxe… Tu e as tuas modernices…”, responde-lhe um Jaime barrigudo, enquanto se ouve Vic a perguntar se pode comer umas bolachas e o pai a dizer-lhe que não, que daí a pouco vão jantar. Ao mesmo tempo, Jorge confidencia à sua tia Alice que Vic tem peso a mais e a pediatra está preocupada. “Há muita obesidade infantil e miúdos a aparecer com doenças graves no fígado”, diz-lhe Jorge, ele sim, com fígado gordo não-alcoólico. “A médica disse que a cirrose pode aparecer em pessoas que não bebem… até em crianças…”
A partir desta deixa, a história leva-nos a conhecer melhor o fígado. Tem de controlar muita coisa, explicam-nos, desde a qualidade do sangue até aos níveis de energia do corpo.
Quando obrigamos o fígado a retirar gordura do sangue e a acumulá-la, por causa de uma alimentação pouco saudável, excesso de bebidas alcoólicas e falta de exercício físico, o primeiro resultado pode ser a inflamação. Esta inflamação do fígado originada pela acumulação de gordura é uma hepatite, que se chama esteato-hepatite (os vírus, como o da hepatite C, também podem provocar uma inflamação hepática). Para reparar os danos no fígado, ocorre então a cicatrização (fibrose). Se o fígado for forçado a fazer muitas fibroses, a inflamação evolui para uma cirrose, o que altera a estrutura deste órgão e compromete a sua função.
“Fui diagnosticado com fígado gordo não-alcoólico, porque nunca bebi álcool”, explica-nos Jorge. “Provavelmente já tenho o fígado inflamado. É o que vem a seguir, antes da cirrose.” E a evolução a seguir à cirrose é o cancro. Sobre a cirrose, Jorge já nos tinha antes explicado: “Quando o fígado tem cirrose, partes dele deixam de funcionar e podem morrer”, ao que a tia Alice acrescenta: “Há pessoas que até precisam de um fígado novo.”
Um projecto chamado Foie Gras
Desde 2017, o fígado gordo não-alcoólico tem sido alvo de um projecto de investigação de 3,2 milhões de euros designado por Rede Europeia de Formação Avançada Foie Gras (fígado gordo, em português). Coordenado pelo Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra, o projecto conta com 13 instituições oriundas, além de Portugal, da República Checa, Itália, Polónia, França, Alemanha e Espanha. Da parte portuguesa, os parceiros incluem ainda a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, a Universidade do Porto e a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal.
No projecto Foie Gras, que termina em Junho deste ano, está a escrutinar-se uma miríade de aspectos desta doença, como os mecanismos moleculares, as alterações fisiológicas, novos biomarcadores, a dieta alimentar como a mediterrânica, novas abordagens terapêuticas e a comunicação da ciência relativa à doença. No âmbito do projecto, há 13 jovens a fazer o doutoramento.
A catalã Mireia Alemany i Pagès, bióloga celular e molecular, é um desses jovens: aluna do Programa Doutoral em Biologia Experimental e Biomedicina (PDBEB) da Universidade de Coimbra, dedica-se em exclusivo à comunicação de ciência sobre o fígado gordo não-alcoólico. A tese tem orientação do investigador João Ramalho Santos, professor do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, coordenador do programa PDBEB e especialista em banda desenhada, e de Anabela Marisa Azul, bióloga do CNC.
“Além de investigação de ponta para entender melhor a fisiopatologia e potenciais novas abordagens terapêuticas para o NAFLD, a rede Foie Gras está profundamente comprometida com a comunicação de ciência e o envolvimento de diferentes tipos de público”, sublinha João Ramalho Santos, biólogo celular e molecular, co-autor de vários livros de BD, como A Viagem Mais Longa – Fernão de Magalhães e a Primeira Circum-Navegação (2020), Folias Mitocondriais: Uma Breve Viagem Sobre a Energia da Vida (2020), As Luzes do Príncipe (2019) ou Uma Aventura Estaminal (2013).
É neste contexto que surge agora o livro de banda desenhada Um Fígado Equilibrado é Meio Caminho Andado!, cuja história e conceito são de Mireia Alemany i Pagès, o guião de João Ramalho Santos, a ilustração de Rui Tavares e o apoio editorial de Anabela Marisa Azul. Rui Tavares é aluno do mesmo programa de doutoramento do que a bióloga catalã (com uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia) e a sua tese, orientada também por João Ramalho Santos e Anabela Marisa Azul, centra-se na vertente gráfica da comunicação de ciência.
A ideia insere-se numa linha seguida pelo CNC relativamente à divulgação de ciência, que tem passado pela produção de bandas desenhadas de cariz científico – algumas delas histórias curtas divulgadas no PÚBLICO sobre assuntos como as utopias científicas, o cérebro, a diabetes, o sono, a doença de Machado-Joseph, a esclerose lateral amiotrófica, a reprodução humana, a tuberculose ou a promoção de hábitos de vida saudáveis e a prática do exercício físico.
Essa última BD, sobre o exercício físico, as mitocôndrias e nós, de Julho de 2018, já resultava de uma colaboração entre o CNC e o projecto Foie Gras, elaborada a propósito dos Jogos Europeus Universitários de 2018 em Coimbra, tendo como autores precisamente João Ramalho Santos, Mireia Alemany i Pagès, Rui Tavares e Anabela Marisa Azul.
A BD sobre o fígado é a última novidade dessa aposta em comunicação de ciência. Importante a reter aqui é que resultou de uma “co-criação” entre Mireia Alemany i Pagès e Rui Tavares, nas suas teses de doutoramento dedicadas à comunicação de ciência, que se estendeu à Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP), a mais antiga a nível mundial na área da diabetes, fundada em 1926.
Ouvindo os doentes
Primeiro, fez-se um trabalho de campo exploratório com diabéticos de tipo 2 em colaboração com a APDP, para perceber o que estes doentes conheciam e desconheciam sobre o fígado gordo não-alcoólico. Esse trabalho, uma colaboração entre biólogos, psicólogos, sociólogos, cuidadores, clínicos e doentes, originou um artigo científico publicado na revista BMC Public Health em Julho de 2020, que começa por dizer que se estima que cerca de 70% dos doentes de diabetes de tipo 2 têm fígado gordo não-alcoólico e que esta doença hepática afecta 25% da população mundial.
“É actualmente a doença crónica do fígado mais comum a nível mundial e constitui uma ameaça crescente à saúde pública a nível económico e clínico”, lê-se no artigo científico, baseado em entrevistas a 30 diabéticos (dez diagnosticados com fígado gordo não-alcoólico) seguidos em consultas na APDP. Embora o termo “fígado gordo” fosse reconhecido por 15 doentes, existia uma fraca compreensão da fisiologia do fígado e da doença. “Os nossos dados retratam uma falta de conhecimento generalizada do papel do fígado no metabolismo”, diz-se ainda. “Embora o conceito de cirrose fosse familiar à maioria dos entrevistados, o conhecimento da relação entre o fígado gordo não-alcoólico, a diabetes de tipo 2 e a fase final desta doença hepática era baixo.”
As histórias de vida dos diabéticos e as suas dúvidas, descritas no artigo científico, serviram assim de base à criação das personagens e à narrativa de Um Fígado Equilibrado É Meio Caminho Andado!. O que de científico se incluiu no livro procura responder ao que os doentes queriam saber ou os seus cuidadores queriam que eles soubessem, resume João Ramalho Santos.
As características do fígado gordo não-alcoólico, a sua prevenção e como se pode tratar esta doença – é sobretudo mudar o estilo de vida para evitar que se agrave – e outras doenças metabólicas como a diabetes são aqui abordadas. “Isto porque os pacientes com diabetes têm grande risco para esta patologia, e raramente são abordados quanto a ela”, nota o biólogo.
“O conteúdo biomédico foi adaptado às necessidades de informação e aos conhecimentos partilhados por doentes com diabetes de tipo 2, numa investigação qualitativa realizada na APDP”, explica-se no final da BD. A estrutura narrativa e as imagens, acrescenta-se, incorporam os resultados desse trabalho empírico e procuram promover a saúde, estilos de vida saudáveis e mudanças de comportamento.
A ciência da comunicação de ciência
Além de ter sido construída a partir do diálogo com os doentes, a outra particularidade desta BD é que o seu impacto vai agora ser monitorizado num projecto de investigação. Irá avaliar-se quão eficaz é esta forma de comunicação a colmatar o desconhecimento sobre a doença.
“Raramente em comunicação de ciência se mede seriamente o impacto de iniciativas, e queríamos construir um projecto que fosse tão sólido do ponto de vista científico como validar um novo gene, um alvo terapêutico ou um teste diagnóstico. Isto é investigação em comunicação de ciência, não é só comunicação de ciência. É uma diferença importante”, destaca João Ramalho Santos.
“Já tínhamos a experiência com a BD das células estaminais (ainda hoje muito utilizada no ensino), e já aí medimos o impacto. É uma ferramenta que tenho desenvolvido. Porque não aprofundar a sua potencial utilidade e, já agora, estudá-la tão a sério como estudo a função metabólica de espermatozóides e células estaminais?”, conta o biólogo, de quem partiu a ideia de utilizar a BD como comunicação da doença do fígado gordo. “Como coordenador do PDBEB, tenho tentado que mais projectos interdisciplinares deste tipo surjam. Sem desdenhar a componente disciplinar, estes cruzamentos são fundamentais para irmos mais longe.”
Tanto quanto João Ramalho Santos sabe, não existe nenhum projecto de investigação no mundo que avalie o impacto de uma BD na consciencialização e alteração de comportamentos em relação a uma doença. “Achamos que é pioneiro nesse aspecto. Se houvesse, talvez tivesse sido mais fácil de montar tudo isto... Menos interessante, mas mais fácil”, responde, contando que os orientadores dos outros 12 jovens no Foie Gras estavam inicialmente “muito cépticos” em relação ao projecto de Mireia Alemany i Pagès “enquanto matéria científica”, mas depois foram-se convertendo à medida que os resultados apareciam em publicações científicas. “Hoje querem replicá-lo nos seus países, o que me deixa muito satisfeito.”
É por isso fundamental responder a dois questionários para se poder avaliar o impacto de Um Fígado Equilibrado É Meio Caminho Andado! como estratégia de comunicação sobre o fígado gordo. Um é para responder antes de ler a BD e outro depois. As informações serão depois interpretadas no projecto de investigação em comunicação de ciência integrado no Foie Gras e espera-se que sejam úteis em programas de prevenção e apoio da doença.
No questionário antes de lermos o livro, perguntam-nos, por exemplo, se avaliamos a gravidade desta doença, numa escala de 1 a 7, como nada séria ou muito séria ou quão importante é para nós manter um estilo de vida saudável. Quanto às perguntas após a leitura da BD, não queremos ser desmancha-prazeres e deixamo-lo descobrir sozinho e, com isso, ajudar os cientistas na sua investigação.
O livro destina-se a toda a gente – “até porque grande parte da luta conta este tipo de coisas tem a ver com prevenção”, salienta João Ramalho Santos. Além do site do questionário, esta BD terá uma vida em papel. “Será impressa em português e inglês pela Imprensa da Universidade de Coimbra e distribuída gratuitamente pelos parceiros do projecto.”
Em Portugal, a distribuição gratuita da versão impressa incluirá centros especializados e escolas. “Em PDF, será livremente distribuída, incluindo por sociedades especializadas, centros de investigação e associações como a APDP, havendo já versões prontas em francês, catalão, espanhol, italiano, estando previstas em alemão, checo, polaco (todos os parceiros do Foie Gras).” Haverá ainda uma versão sem texto para quem quiser adaptar o livro à sua língua.
E existe em Portugal algum programa específico de prevenção do fígado gordo? “Não”, responde João Ramalho Santos. “Nem em Portugal nem, genericamente, noutros países, sobretudo os do consórcio. Parte da ideia do projecto é precisamente alertar para isto e servir de alavanca para a dinamização específica desta patologia.”