Fernando era um jovem “nem-nem” até fazer trabalho comunitário

Abandonara a escola e entregara-se a uma vida de ócio e pequena delinquência, sem preocupação com o futuro. Quando o tribunal o condenou a trabalho a favor da comunidade, percebeu que podia trabalhar e ser um “igual”. Terceiro capítulo de uma série sobre inclusão laboral, em dose dupla.

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Se fosse homem de discursos, Fernando Pinho poderia discorrer sobre a importância de se encontrar algo que se julga fazer bem e gosta. Andava por “maus caminhos”, perdido na estatística dos jovens entre os 15 e os 29 anos que não estudavam, não trabalhavam, nem frequentavam formação (NEET), até um tribunal o forçar a prestar serviço a favor da comunidade.

Abandonou a escola cedo. “A partir do 7.º ano, comecei a achar que era difícil [perceber a matéria].” Era como se aquele lugar deixasse de ser para ele. “Desisti.” Ia nos 16 anos. Terminara o 7.º ano. Não sabia o que ia fazer à vida, nem estava preocupado com isso. Não se lembra de ouvir a mãe reclamar. O padrasto, sim. “Ele falava, mas eu queria lá saber...” Dormia até tarde. Despertava por volta das 11h. Ia até à rua. Juntava-se aos amigos no Jardim da Corujeira, no centro da freguesia de Campanhã, na zona oriental do Porto. “Ficávamos ali. Íamos até ao café. Fazíamos algumas asneiras.”

Correu mal uma ida à praia. “Roubámos uns telemóveis. Fomos ‘caços’.” Primeira condenação: roubo, um ano e oito meses de prisão. Pena suspensa. Correu mal uma conversa com os amigos numa boca de tráfico de drogas. “A polícia chegou. Eles tinham droga escondida. De quem era? Não era de ninguém. Ninguém falou, todos para a esquadra.” Segunda condenação: cumplicidade, dois anos e três meses de prisão. Pena suspensa. Correu mal um dia de calor em que uns arriscavam entrar num supermercado em tronco nu. “Carga de ossos”, terá comentado um funcionário. “É carga de ossos, mas chega para ti”, retorquiu um dos rapazes. “Houve ali agressões. Peguei num carrinho. Aqueles de cestos pequeninos. Pumba nas costas.”

O magistrado que lhe calhou em sorte não queria enviá-lo para a prisão uns meses, mas também não o queria deixar ir para casa com outra pena suspensa. Ordenou-lhe que reparasse, ainda que de forma simbólica, o dano que provocara, fazendo um trabalho socialmente útil. Condenou-o a 420 horas de trabalho a favor da comunidade. Uma opção que tem estado a aumentar.

Um “igual"

Pediu para cumprir a pena na secção de obras da Junta de Campanhã. Havia outros a fazer o mesmo. “Não faziam nada. Não se queriam sujar. Faziam-se burros. Mas a gente tinha de cumprir aquelas horas. Eu fazia as coisas. Se não fizesse as coisas, as horas não passavam.”

Acontece o trabalho a favor da comunidade ser uma farsa representada por condenados, técnicos de reinserção social e instituições de acolhimento, mas para Fernando não foi. Alinharam-se vários factores: ia nos 20 anos, namorava, estava a poucos meses de ser pai e gostava daquilo. “Gosto de fazer o que faço. Pertinho de casa e tudo...” 

Inscreveu-se num curso de Mecânica de Pesados que lhe daria equivalência ao 9.º ano – incentivara-o a equipa de acompanhamento de beneficiários de rendimento social de inserção (RSI) da Qualificar para Incluir. “Inscrevi-me a pensar no dinheiro”, admite. “Recebia 189 euros de rendimento. Mais 260 de bolsa fazia quase um ordenado.” Em 2011, o salário mínimo estava nos 485. Afinal, não havia bolsa. A bolsa fora trocada pelo transporte. Quando a notícia chegou, Fernando já descobrira que também gostava daquilo. Às vezes, à tarde, até ajudava os colegas.

Entre as 17h e as 21h, estava no curso. De manhã, três horas e meia de trabalho comunitário. Sentia-se entre iguais. Sentia-se capaz. “Não faltava, não chegava atrasado, fazia o trabalho.” O responsável pela secção de obras reparou. E os técnicos do gabinete de acção social também. Mas como mantê-lo a trabalhar num período de impossibilidade de contratação pública? Fernando esteve uns meses em casa. Voltou com um Contrato Emprego Inserção +, um programa de trabalho socialmente útil para desempregados beneficiários de RSI, criticado por ocupar postos de trabalho

Sucessão de soluções temporárias

No pico da crise da dívida, o fenómeno NEET atingiu proporções alarmantes. A Comissão Europeia lançou a Garantia para a Juventude destinada a assegurar que todos recebiam oferta de emprego, educação ou um estágio. Os especialistas não se cansavam de explicar que esta realidade é heterogénea (pode incluir jovens desencorajados, à procura de trabalho, com trabalho precário, a cuidar de alguém, com problemas de saúde ou comportamento). Nem que os jovens com percursos escolares curtos, como Fernando, têm maior dificuldade. 

Fernando tornou a casa, mas a junta precisava de alguém e a equipa não o queria largar. Como terminara o curso, voltou para um estágio profissional. Não podia pôr em prática o que aprendera, mas podia prosseguir o processo de inclusão laboral. Ainda cumpriu um Contrato Emprego Inserção, outro programa de trabalho socialmente útil, mas destinado a beneficiários de subsídio de desemprego. Outra vez para casa. Esgotadas estas respostas do Instituto de Emprego e Formação Profissional, só podia “passar recibos verdes”. E assim esteve até abrir um concurso público. “Tenho dois anos de efectivo”, diz. Nota bem a diferença. Não só no salário. “Tenho subsídio de férias e de Natal.” A mulher, no sofá, interrompe-o: “Tens ADSE.” 

Daniela também foi “nem-nem”. Também desistiu da escola aos 16 anos. Também fez um curso que lhe deu equivalência ao 9.º: assistente familiar de apoio à comunidade. Trabalha como auxiliar de serviços gerais numa clínica. Têm um filho de nove anos, que está agarrado ao telemóvel, outro de três, que está a tentar apanhar a conversa, e aguardam uma filha. E quem lhes dera que as crianças tivessem uma relação melhor do que a sua com a escola. O mais novo gosta, o mais velho não. “É preguiçoso”, começa ela. “É tímido”, justifica ele. “Tem défice de atenção, dislexia, um pouco de hiperactividade, o que não ajuda”, esclarece ela. Não querem que se sinta ficar para trás, como sentiram. Procuraram soluções. “Foi para uma turma à parte. Todos os meses, vai ao psicólogo. Anda numa explicadora e tudo!”

Aos 29 anos, o passado de delinquência parece-lhe outra vida: “Éramos novos, não pensávamos.” Está focado na nova vida. Continua a gostar do que faz. “Não é o mesmo sítio. Não é preso. Não é todos os dias a mesma coisa.” Pode, por exemplo, fazer o transporte de uma cama articulada ou de uma cadeira de rodas ou a mudança inteira. Também ajuda a recuperar habitações, no âmbito de uma parceria da câmara com a junta. E a tudo isto atribui um sentido maior. “Estamos a ajudar a prestar um serviço social, estamos a prestar um serviço à sociedade.”