Três anos de prisão para mãe acusada de mutilação genital feminina

É a primeira vez que o crime de mutilação genital feminina é julgado em Portugal. Mãe terá permitido que a bebé fosse cortada durante férias na Guiné-Bissau, quando a menina tinha um ano e meio.

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Sara Jesus Palma

O Tribunal de Sintra condenou, esta sexta-feira, a três anos de prisão efectiva e a uma indemnização de dez mil euros a mulher acusada do crime de mutilação genital por ter permitido o corte da filha, que na altura tinha um ano e meio. Em cinco anos desde a criação do crime de mutilação genital feminina no ordenamento jurídico português, punível com pena de dois a dez anos de prisão, é a primeira vez que um caso chega a tribunal em Portugal.

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O Tribunal de Sintra condenou, esta sexta-feira, a três anos de prisão efectiva e a uma indemnização de dez mil euros a mulher acusada do crime de mutilação genital por ter permitido o corte da filha, que na altura tinha um ano e meio. Em cinco anos desde a criação do crime de mutilação genital feminina no ordenamento jurídico português, punível com pena de dois a dez anos de prisão, é a primeira vez que um caso chega a tribunal em Portugal.

O colectivo de juízes que analisou o caso considera que não ficou provado que tivesse sido a arguida a fazê-lo, mas antes alguém não identificado a seu pedido, na Guiné-Bissau, que fez cortes na região dos pequenos lábios da menor que provocaram lesões permanentes ou cicatrizes permanentes na região vulvar da menina. “A arguida não soube proteger a filha”, concluiu-se.

Na leitura do acórdão, o presidente do colectivo de juízes, Paulo Almeida Cunha, destacou que “a arguida sabia que estava a mutilar a menor” e que “isso lhe iria provocar dores”. O juiz realçou ainda a “elevada ilicitude” do acto, tratando-se de “uma mãe que atenta contra a própria filha”, considerando que agiu premeditadamente, planeando a viagem à Guiné para que a menina fosse cortada.

À saída do tribunal, o advogado da arguida, Jorge Gomes da Silva, afirmou que vai recorrer da decisão. “Entendemos que uma pena suspensa na sua execução seria mais justo”, afirmou. A jovem mãe, cidadã guineense com nacionalidade portuguesa e residente em Portugal, fica agora em liberdade, a aguardar decisão da segunda instância.

O advogado afirmou que “o tribunal foi mais duro” na aplicação da pena, considerando que a decisão dos juízes, no primeiro caso deste crime que foi levado a tribunal, pretendeu ser “dissuasora”, para que “as práticas que possam vir a acontecer no futuro não sejam efectivadas”. Manifestou, contudo, “indignação” pela forma como o tribunal se baseou no relatório da perícia, ignorando as práticas específicas das comunidades guineenses, afirmando ainda que o tribunal não estava preparado para analisar os contextos culturais em que esta prática é realizada.

“Há todo um conjunto de factos que podiam ter feito com que o tribunal tivesse pelo menos suspendido a pena na sua execução”, tais como o facto de se tratar de uma jovem mãe solteira que na altura tinha 19 anos. “Vamos pegar numa jovem de 20 anos e mandar para a cadeia. O que é que vai lá aprender? Sai de lá o quê? Só para mostrar ao mundo, a Portugal, que agora há uma decisão que põe fim a essas práticas? Acho que é injusto”, afirmou J. Gomes da Silva aos jornalistas.

O Ministério Público tinha pedido pena de prisão efectiva para R.D., actualmente com 21 anos, acusada de praticar ou permitir a prática do corte genital da sua filha, que na altura tinha um ano e sete meses. A procuradora do MP afirmou ter convicção de que “a arguida teve conhecimento e consentiu” que a prática fosse feita à filha, o que terá ocorrido na Guiné-Bissau, tendo depois feito “tudo para esconder o crime”. “Há que decretar tolerância zero em relação a isso”, afirmou a procuradora Carmen Ferreira. 

O perito do Instituto Nacional de Medicina Legal, que examinou a criança quatro meses depois de regressada da Guiné, em 2019, garante que a cicatriz da menina na zona do clítoris, sem indícios da remoção de nenhuma parte da pele, foi feita com um objecto. “Para produzir aquela cicatriz, foram [práticas] certamente dolorosas.” O perito acrescentava ainda que “durante algum tempo [a menina] terá tido hemorragia que fosse identificável”, conclusão em que a procuradora do Ministério Público se baseia para afirmar que a mãe “não pode não se ter apercebido” do sangramento e está a esconder isso. 

“Eu até agora não consigo imaginar isso”, afirmou a jovem durante o julgamento. “Mesmo que isso fosse verdade, eu nunca autorizaria isso.”

Primeiro caso em tribunal

A mutilação genital feminina consiste em qualquer intervenção nefasta sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas, em muitos casos motivada por razões culturais ou de tradição. No caso que conheceu hoje decisão, as cicatrizes encontradas na menina são caracterizadas como MGF de tipo IV, diferente dos cortes mais frequentemente encontrados em mulheres que residem em Portugal - segundo dados da DGS publicados em 2018, é mais frequente encontrar mulheres com MGF tipo I (remoção parcial ou total do clítoris) ou II, que implica a remoção do clítoris e de parte dos lábios genitais.

O estudo mais recente sobre mutilação genital feminina em Portugal, publicado pelo Observatório Nacional de Violência e Género em 2015, estima que residam em Portugal mais de 6500 mulheres com 15 ou mais anos já tenham sido vítimas de mutilação genital, e cerca de 1830 meninas com menos de 15 anos já teriam sido submetidas a esta prática ou estariam em risco de o ser.

O crime de MGF tornou-se autónomo no Código Penal apenas em 2015, numa alteração legislativa decorrente da aplicação à legislação portuguesa da Convenção de Istambul, o tratado do Conselho da Europa de combate à violência doméstica e de género. 

Em Portugal, em 2019, houve sete processos abertos pelo Ministério Público por mutilação genital feminina, de acordo com informação enviada ao PÚBLICO pela PGR. Além do caso que resulta agora em acusação, cinco inquéritos foram arquivados e outro ainda se encontra em investigação. Em 2016, o primeiro inquérito aberto por crime enquadrável no artigo n.º 144-A foi arquivado sem ir a julgamento. Em 2017, foi aberto outro processo que envolvia MGF, que também não resultou em acusação por esta prática. Em 2018, não houve nenhum inquérito aberto por MGF no país.