É verdade, está frio atrás dos montes
Cá, no interior, a amplitude térmica não faz com que as pessoas exijam automaticamente a expulsão da geada ou a prisão perpétua das nuvens. E, a custo de algumas crises térmicas, ainda não criou ódio pelos que trazem um calor no corpo e na alma e nos aquecem as ruas de alegria demográfica.
Há mulheres e homens para lá dos montes. Há pessoas, lá onde o frio anima os termómetros a descer abaixo do que é habitual para um “termómetro de bem”. Há mais do que queixume, mais do que surpresa por baixo dos campos brancos e dos vidros dos carros congelados. Há mais do que uma reportagem, há mais do que um sorriso honesto.
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Há mulheres e homens para lá dos montes. Há pessoas, lá onde o frio anima os termómetros a descer abaixo do que é habitual para um “termómetro de bem”. Há mais do que queixume, mais do que surpresa por baixo dos campos brancos e dos vidros dos carros congelados. Há mais do que uma reportagem, há mais do que um sorriso honesto.
Cá, atrás dos montes, o frio convive honrosamente com os calores de inferno, somos democraticamente amantes das estações. E o medo, o medo não exige que tranquemos a porta e não deixemos entrar mais alguém.
Cá, no interior, a amplitude térmica não faz com que as pessoas exijam automaticamente a expulsão da geada ou a prisão perpétua das nuvens. E, a custo de algumas crises térmicas, ainda não criou ódio pelos que trazem um calor no corpo e na alma e nos aquecem as ruas de alegria demográfica.
Interiormente falando, faz-se um lume forte, amam-se as carquejas e giestas, coloca-se um rodilho na porta, reza-se para que os males se espantem, põe-se um xaile e uma samarra, escondem-se os rostos ruborizados de entusiasmo, de dor, de amor. Atrás dos montes, sente-se como sentem os humanos, nem mais nem menos. E o hábito ou a teimosia cultural fazem com que se queira oferecer o fumeiro curado pelo frio e pelo amor ao que é da terra.
A factura da luz é cara, custa as costas dobradas, os dias de ausência no lar, a divisão emigrada, os silêncios fumados e, há quem diga, que até há casas escurecidas pela solidão.
Claro que por cá, para os que estais lá, atrás da televisão, tudo vos parece escuro, deserto, congelado. E teimais em rir-vos com estes modos de falar que ainda nos pertencem e lembrar-vos de nós quando o gelo cá vem. Uma lembrança que parece mais condescendente que interessada. E assim, as facturas continuam caras e as entrevistas não nos põem lenha no lume. Atrás dos montes, há pessoas de carne e osso, de cá, de lá e de todas as diversidades. Uns que tremem mais, outros que não vacilam nem com muitos negativos. Uns que se agasalham, outros que nem saem de casa. Uns que se conformam e outros que usam a neve e o gelo como combustíveis para a vontade de mudar.
Quem por cá nasce, sabe que as casas têm janelas pequenas, porque entra menos frio, sabe que as paredes grossas têm tanto valor como uma palavra de honra e que um copo de vinho aquece mais a alma se for partilhado por todos os que se rodeiam na amizade. Quero dizer que, interiormente falando, não se liga muito à meteorologia, liga-se mais à realidade. Os que chegam, se quiserem, podem aprender a ver no tempo uma oportunidade, aprender a apreciar o silêncio e a demora, aprender a dar uso à roupa do armário e a defender pontos de vista com uma emoção que aquece o rosto e o peito. Por cá, no interior, resiste-se, como em qualquer outro lugar. O frio entra e as geadas apelam à condensação das almas, à partilha na divisão pequenina e ao trabalho disciplinado.
Se todos e todas pudéssemos aquecer as casas com a mesma alma com que se amassa o pão, talvez não existissem mantas de mil quilos guardadas na arca de madeira maciça, nem capas de lã com cheiro a fumo e a naftalina, nem intoxicações acidentais por monóxido de carbono. Se todos e todas pudessem aceder a uma factura honesta, talvez o distanciamento social não fosse tão duro, tão vazio. E talvez ninguém precisasse de pagar uma fortuna para que um táxi o deixasse num hospital, a horas de distância do seu lar, porque os pulmões já não acompanham o frio e porque o sistema vascular já não aguenta o sangue forte inspirado pelas montanhas.
Se a factura nos ajudasse, talvez o hospital não sentisse que se aperta e se espreme nos recursos que teimam em não chegar. E se a factura fosse honesta, o frio entraria menos no lar e talvez a casa estivesse cheia, porque aquela parte do aquecimento não teria migrado para longe, onde há outras formas de arranjar como pagar. A resiliência dos que chegam e dos que insistem em não ir vai fazendo a função de vidro duplo. Claro que mantemos a portinhola do gato aberta, em jeito de esperança, para o caso de aparecer alguma surpresa, alguma oferta social, algum plano de revitalização ou algum interesse em que o nosso voto conte de forma proporcional à densidade dos que somos.
É bonito, para alguns privilegiados, poder fotografar este gelo, desenhar um sol no vidro congelado, bafejar as mãos dos miúdos, sorrir sem sentir o queixo, enternecer-se quando vê um Sol de Inverno, ou meditar enquanto se caminha na companhia do silêncio abafado dos passos pela neve. Enregelar faz parte do léxico, tal como aquecer o corpo na lareira ao chegar a casa. E nestes tempos de distanciamento, posso garantir que é impagável a possibilidade de dar uma caminhada sem máscara e sem gente e sentir o ar frio a encher os pulmões e a dar ânimo para aguentar o que se teme.
Se a factura nos ajudasse, podeis crer que o frio era só mais uma das coisas que “quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe porque ama, nem o que é amar.”