Carlos do Carmo – a voz e o exemplo
Carlos do Carmo foi o maior propagandista do Fado: libertou-o de todos os preconceitos, mas não o embalsamou nem o conservou no Museu das nossas relíquias do passado. Foi um homem recto e solidário, um talento generoso e um cidadão exemplar.
O mais doloroso quando se perde um amigo é o sentimento de frustração por não temos aproveitado melhor a sua companhia. Carlos do Carmo, além de um grande fadista, era também um cidadão exemplar e um fabuloso conversador. A quem não teve essa gratificante oportunidade, como eu tive, de estar horas à volta de uma mesa a ouvi-lo contar histórias, proponho-lhe que veja a sua performance no Tivoli, em 2012, numa sessão do True Tales, em que ele conta, com o fino humor que o caracterizava, uma aventura hilariante e rocambolesca passada em 1982, numa noite louca, em que, na companhia de Júlio César e de outros passageiros que se lhes vão juntando, se passeiam uma noite inteira por Lisboa, num eléctrico que conseguiram fazer sair da estação de Santo Amaro, depois de terminado o serviço. É um “filme” digno dos Monty Python.
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O mais doloroso quando se perde um amigo é o sentimento de frustração por não temos aproveitado melhor a sua companhia. Carlos do Carmo, além de um grande fadista, era também um cidadão exemplar e um fabuloso conversador. A quem não teve essa gratificante oportunidade, como eu tive, de estar horas à volta de uma mesa a ouvi-lo contar histórias, proponho-lhe que veja a sua performance no Tivoli, em 2012, numa sessão do True Tales, em que ele conta, com o fino humor que o caracterizava, uma aventura hilariante e rocambolesca passada em 1982, numa noite louca, em que, na companhia de Júlio César e de outros passageiros que se lhes vão juntando, se passeiam uma noite inteira por Lisboa, num eléctrico que conseguiram fazer sair da estação de Santo Amaro, depois de terminado o serviço. É um “filme” digno dos Monty Python.
Mas Carlos do Carmo era também um cidadão exemplar. Foram muitas as causas e as batalhas em que me envolvi para defender o interesse público, sobretudo na época em que Cavaco deu a bênção a Passos Coelho para proceder à mais bárbara e ruinosa depredação das nossas empresas públicas, e em que ele não estivesse incondicional e activamente na frente dos nossos protestos. Para não falar de muitas posições que tomou, ao longo da vida, só ou acompanhado, a bater-se sem hesitação nem desalento pelo que achava ser justo.
Resta o fadista, mas, sobretudo, o que, nessa qualidade, Carlos do Carmo fez pelo fado. O que poucos sabem é que, durante a ditadura, essa canção popular dos bordéis da Mariquinhas e do Parque Mayer, que passou injustamente por ser, com o futebol e Fátima, um dos pilares da propaganda do Regime, era, na verdade, execrado pelos próceres do salazarismo, que o consideravam uma canção reles, popularucha, marialva e decadente.
Mas, ao apropriar-se da projecção internacional de Amália e de Eusébio para passar para o exterior a imagem de um país sem preconceitos de raça ou classe social, os propagandistas do Regime fizeram com que os intelectuais de esquerda lhe fizessem uma batalha tenaz e persistente. Sobretudo a Amália: basta ler um livro póstumo em que se transcreve uma penosa conversa entre Manuel Fonseca e a cantora (que responde sempre com uma exemplar clareza, sinceridade e fina inteligência, aos ataques e insinuações do admirável autor de Seara de Vento), para perceber como, nos últimos anos do Regime, o preconceito sobre a sua filiação ideológica fez escola, e impediram o melhor da nossa elite cultural de apreciar o génio puro e rebelde da nossa Diva.
O mais absurdo é que, depois do feliz e inspirador encontro com Alain Oulman, que adaptou para ela alguns dos melhores e mais rebeldes poetas do seu tempo (O'Neill, Mourão-Ferreira, Alegre), os seus fados foram queimados na fogueira das grandes heresias. E quando ambos ousaram servir-se de Camões para algumas das suas melhores canções, lembro-me de ouvir uma graçola que corria pelas tertúlias da Brasileira: “Sabes quem era o Camões?”, perguntava-se; e respondiam-nos: “Era um ceguinho que escrevia fados para a Amália Rodrigues!”
Esta divagação vem a propósito de Carlos do Carmo, para exaltar uma das facetas mais nobres e admiráveis deste grande homem que nos deixou a voz e o exemplo. Foi ele que, depois de Abril, com a autoridade de alguém que nunca escondeu as suas posições políticas de homem livre e de esquerda, deu ao Fado o que lhe era devido. Foi ele que o aproximou das novas gerações de cantores, que lhe devolveu a dignidade e a nobreza artística que lhe havia sido roubada pelo Regime e desdenhada pela “intelligenzia” do Chiado, que lhe deu uma abertura criativa sem baias e uma projecção internacional sem preconceitos, depois de, durante meio século de ditadura, ter sido perseguida pelo anátema de ser a canção do Regime.
Carlos do Carmo foi o maior propagandista do Fado: libertou-o de todos os preconceitos, mas não o embalsamou nem o conservou no Museu das nossas relíquias do passado. Deu-lhe vida e visibilidade, cantou-o com os mais jovens, fez dele uma canção reconhecida como “património imaterial da Humanidade” pela UNESCO, ganhou o primeiro Grammy para Portugal, em 2014 – e logo na categoria de “Lifetime Achievement” –, e partilhou esses sucessos com os portugueses, que, ao longo da vida e da carreira, o aplaudiram e lhe deram alento. Foi um homem recto e solidário, um talento generoso e um cidadão exemplar.