Soul: pele negra, vozes brancas
O que está em causa não é o trabalho de dobragem executado por actores brancos, mas o poder que a representatividade pode ter no combate ao racismo.
Sejamos profetas do óbvio: no momento histórico em que pela primeira vez o protagonista e o co-realizador de um filme da Disney são negros, o que se faz em Portugal? No ano em que o movimento #BlackLivesMatter transbordou para todas as latitudes, qual foi a opção no nosso país neste filme sobre a cultura afro-americana? Isso mesmo: colocar actores brancos a dar voz a personagens negras. Nenhum mal nisso, mas a escolha pela diversidade da Pixar foi ignorada por cá. Se existe um problema de representação de pessoas não-brancas no nosso meio cultural não é por falta de talento (quem se lembra do mestre da locução Alberto Magassela?) e sabemos que não será desta forma que o vamos resolver.
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Sejamos profetas do óbvio: no momento histórico em que pela primeira vez o protagonista e o co-realizador de um filme da Disney são negros, o que se faz em Portugal? No ano em que o movimento #BlackLivesMatter transbordou para todas as latitudes, qual foi a opção no nosso país neste filme sobre a cultura afro-americana? Isso mesmo: colocar actores brancos a dar voz a personagens negras. Nenhum mal nisso, mas a escolha pela diversidade da Pixar foi ignorada por cá. Se existe um problema de representação de pessoas não-brancas no nosso meio cultural não é por falta de talento (quem se lembra do mestre da locução Alberto Magassela?) e sabemos que não será desta forma que o vamos resolver.
Soul é apenas o quarto filme de animação hollywoodesca em que a personagem principal é negra. Depois de Bebe’s Kids (1992), The Princess and the Frog (2009) e SpiderMan: Into the Spider-Verse (2018), é a vez de Joe Gardner representar quem costuma ficar com o papel secundário. Apesar de não encarar o tema do racismo de frente, Soul foi alvo de uma abordagem cuidada. Durante quatro anos, houve conversas junto de organizações e com a academia americana para a eliminação de estereótipos ofensivos, na busca pela autenticidade e identificação com a comunidade negra, tendo sido já aclamado como um dos melhores filmes do ano. Todo este trabalho merecia mais atenção e cuidado no nosso país. Ouviram-se os afro-americanos, esqueceram-se os afrodescendentes. Talvez por cá ainda pensem que a dobragem não é “trabalho de preto”, como diria Nástio Mosquito. Talvez o nosso mercado pequeno e amorfo se tenha desleixado e não mereça um Mundo Nôbu, como diria Dino d’ Santiago.
O que está em causa não é o trabalho de dobragem executado por actores brancos, mas o poder que a representatividade pode ter no combate ao racismo.
Em Portugal, a cultura é só mais uma área onde existe o problema da ausência de pessoas não-brancas. O primeiro passo, como Grada Kilomba nos esclarece, começa no reconhecimento do racismo como problema. E enquanto a reacção do outro lado for defensiva continuaremos a celebrar casos pontuais como o do jornalista Cláudio França. A invisibilidade de certos grupos no cinema é uma constante e este momento, contra a iniquidade na indústria do entretenimento, foi uma oportunidade desperdiçada. Nada disto é cancel culture nem politicamente correcto, é apenas o constatar de mais um sinal do racismo inconsciente no nosso país.
Perguntam alguns: “Mas e agora a voz também tem cor?”
Poderíamos retorquir que não tem mais nem menos cor que género, nacionalidade ou idade e, no entanto, estes são tidos em conta no momento de escolher os intérpretes das dobragens. Poderíamos ir mais longe – mas não tanto – e lembrar que, durante séculos, as mulheres não podiam subir ao palco e a Julieta de Shakespeare e a Antígona de Sófocles eram representadas por homens. Certamente, quando se contestou esta vetusta tradição, alguém terá perguntado “mas e agora, a interpretação tem género?” Sem ir tão longe, durante décadas as personagens negras no cinema eram interpretadas por actores brancos de cara pintada, o famigerado black face – já que é tudo a fingir, porque não? Parece ridículo, como certamente a voz branca dada a Soul parecerá brevemente. Porque a questão evidente numa sociedade igualitária, não é se a voz tem cor ou se isto tudo não é uma “moda”, como diz o outro.
A questão óbvia é outra: porque foi escolhido um actor branco para dar voz a um personagem negro? Tanto ou mais que na dita escolha o racismo sistémico fica patente no incómodo gerado pelo simples questionamento.
Se é certo que a dobragem de um filme não será o problema mais premente da população racializada, isso não é motivo para branqueá-la. O problema da representatividade, ainda que não toque nas profundas desigualdades sociais – que têm cor e etnia também –, é barómetro do mesmo racismo estrutural que as sustenta. Uma opinião pública que não é crítica o suficiente para exigir representatividade na cultura dificilmente o será para atacar as raízes coloniais do racismo à portuguesa.
A justa denúncia do branqueamento de Soul já está a vencer. Não só a petição pública que exige uma nova dobragem do filme já tem milhares de assinaturas, como ajudou que a desconstrução anti-racista fosse assumida por vários actores. Até Jorge Mourato, que protagoniza a dobragem portuguesa de Soul, já deu voz à desconstrução do racismo – e tê-lo feito após um desconforto público inicial sublinha a força dos argumentos de quem pôs o dedo na ferida. Que seja mais um passo para, da desconstrução individual do racismo, passarmos à desconstrução daquele que, já não há como negar, é o racismo sistémico.