Soul, ou a inesperada virtude da ignorância

Existe um foco excessivo sobre questões identitárias na discussão do recém-lançado Soul. Esta obra da Pixar discorre acerca da morte e aquilo que nela mais assusta: ser inesperada e objectiva.

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Não obstando o grande valor da representação de um indivíduo afrodescendente, neste caso afro-americano, como protagonista de uma longa-metragem da Pixar, existe, seja qual for o padrão de medida do normal nos tempos correntes, um foco excessivo sobre questões identitárias na discussão do recém-lançado Soul.

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Não obstando o grande valor da representação de um indivíduo afrodescendente, neste caso afro-americano, como protagonista de uma longa-metragem da Pixar, existe, seja qual for o padrão de medida do normal nos tempos correntes, um foco excessivo sobre questões identitárias na discussão do recém-lançado Soul.

Este filme, possivelmente e na muito humilde, assim como inexperiente, opinião do autor, um dos melhores alguma vez saídos dos estúdios da Pixar, debruça-se sobre muito mais que questões raciais ou de representação de minorias e também, como muito enganosamente aparenta, não é sobre jazz, um espólio da cultura-americana e indissociavelmente um contributo da cultura por muitos dita “negra” dos Estados Unidos. Mas, assim como é insensato sectorizar as várias formas da cultura de um país de contrariedades e contradições, como é o caso americano, entre aquilo que é de uns e de outros, em vez de apenas valorizar devidamente o património cultural partilhado por todos os habitantes de um país, é também altamente redutor mencionar este filme apenas no seu valor representativo ou por entre as polémicas de dobragens.

Soul é um filme sobre problemas universais que, se são tabus entre crianças e pré-adolescentes, também convalescem qualquer adulto (em especial os adultos!). A morte e a noção de propósito são derradeiras na nossa construção pessoal e também no sentido histórico e civilizacional da nossa espécie. Não conhecem por isso qualquer fronteira arbitrária entre um e outro humano, em vez, alistam-se contra elas todos os que se inscrevem na humanidade.

Por essa mesma razão, enche-me de despeito a polémica, vanglória e também desprezo que rodeiam o filme. Julgo estes sentimentos sintomas da enfermidade mais grave de hoje: ficar-se pela superficialidade. Joe Gardner, o pianista que protagoniza a narrativa, poderia ser Hans Müller, um arquitecto, Zhang Wei, um pintor, ou Maria, uma matemática. Seja qual a posição tomada em relação às questões levantadas por qualquer um menos o filme, fica-se pela tona de uma maré estática e irresolúvel e que peca por se limitar à arbitrariedade da cor. O próprio filme apenas o menciona uma única vez numa admirável homenagem ao jazz que, como dito, não é o tema central da narrativa.

Esta obra da Pixar discorre acerca da morte e aquilo que nela mais assusta: ser inesperada e objectiva. Nela cair sem se sentir completo, sem se sentir realizado ou por não ter seguido as suas paixões. Estes são alguns dos maiores temores de qualquer pessoa.

Estas questões são universais e a morte não questiona identidades, é a danse macabre que a todos toca. A beleza de Soul está na sua alma e na de quem o escreveu. A moral desta história é de uma subtileza e de uma beleza que mais falta faz aos mais velhos, facilmente iludidos acerca do seu propósito e que num salto se lançam a combater contra ou a favor de questões superficiais. A moral é: Para morrer, chega unicamente estar vivo, mas, para viver, é preciso estar-se pronto e estar-se pronto é tão simples como viver com ânimo e paixão.