Uma luz ao fundo do túnel
Estamos no início de um novo ciclo que pior do que o anterior não pode ser, por isso foquemo-nos nas muitas luzes que se vão vislumbrando nos muitos túneis que nos meteram à frente.
Para arrancarmos o novo ano cheios de esperança num mundo melhor, aqui vão alguns factos interessantes recentes, que nos permitem vislumbrar uma luz ao fundo do túnel.
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Para arrancarmos o novo ano cheios de esperança num mundo melhor, aqui vão alguns factos interessantes recentes, que nos permitem vislumbrar uma luz ao fundo do túnel.
Comecemos com um caso que acompanhei de perto e ocorre(u) no nosso quintal, que é a pesca dos tubarões-anequins, também conhecidos como mako sharks, possivelmente o peixe mais cool do nosso planeta. Aplaudi, neste artigo, a inclusão desta espécie no Anexo II da Convenção CITES em 2019, mas resmungava quanto ao facto desta inclusão ser inútil, porque “licenças especiais” (Licença de Introdução Proveniente do Mar) emitidas pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, ou ICNF (e congéneres de outros países) permitiam desembarques na mesma. Eis que, depois de intenso lobbying – com dose de resistência q.b. por parte do sector da pesca comercial – o ICNF delibera, novamente com as suas congéneres europeias, que estes animais já levaram pancada suficiente e proíbem, por isso, a emissão das ditas licenças especiais, que é como quem diz, acabou-se a pesca de anequins em águas internacionais – pelo menos quando o desembarque é em portos europeus. Neste outro artigo encontrarão detalhes adicionais sobre esta tremenda vitória da conservação sobre a pesca excessiva.
Passemos agora para o recente massacre na Torre Bela, acerca do qual já se escreveram muitas linhas e permitam-me que recomende as escritas pelo António Garcia Pereira e Daniel Deusdado, pela clareza de ambas as análises. Perguntar-me-ão que diabo faz este episódio tétrico num artigo intitulado “Uma luz ao fundo do túnel?” e a resposta é simples: atente-se na reacção que este momento negro espoletou. Sejamos pragmáticos quanto a um aspecto: a maioria da população ainda é não-vegetariana e, não sendo completamente imbecil, está penosamente a par de que, ao colocar um pedaço de carne no carrinho de compras, está a ser cúmplice de uma matança. Pior do que isso, estamos (porque incluo-me no grupo que ainda aprecia uns secretos, embora me sinta culpado de cada vez que lambo os dedos enquanto os devoro…) todos cientes de que os desgraçados dos animais são criados em condições desumanas antes de levarem um tiro na testa, ou seja qual for a atrocidade que lhes fazem depois de os enfiarem aos magotes em camiões e os conduzirem em absoluto terror até ao local onde vão morrer, para que os possamos comer.
Nenhum adulto não-lobotomizado ignorou estes factos quando colocou um emoji raivoso nas fotografias dos caçadores da Torre Bela. E, sim, zangámo-nos a sério porque temos o bom senso de nos sentirmos moderadamente culpados com o facto de ainda contribuirmos para o crime desumano que é a criação de carne em massa, mas raios me partam se aceito um bando de palermas que se vangloriam com 540 cadáveres aos pés. Chamo a atenção para o facto de que não estou a ser irónico. A morte de porcos bebés – e, sim, sou dos que sai da A1 para almoçar ou jantar na Mealhada quando a ocasião se proporciona – é um acto cruel, mas, enfim, estamos no topo da cadeia alimentar e os desgraçados dos bichos têm o azar de não ter polegares oponíveis.
Agora imaginemos se um matadouro de leitões viesse para as redes sociais soltar fotos dos seus funcionários a exibirem orgulhosamente – sorridentes – o banho de sangue que se passa lá dentro. E foi isso que nos aborreceu nas fotos. Foi ver palermas felizes com o facto de terem acabado de matar mamíferos sencientes. E o facto de tantos de nós termos reagido da forma que reagimos é um indicador de que há, efectivamente, uma luz ao fundo do túnel, porque tempos houve em que a população inteira aplaudiria as fotos da montaria na Torre Bela, cabendo a uns excepcionais velhos do Restelo as críticas à matança. Hoje em dia, pelo contrário, contar-se-ão pelos dedos de uma mão as almas que não ficaram chocadas com a selvajaria das imagens repletas de sorrisos cretinos a emoldurarem belíssimas criaturas sem vida, a caminho de se tornarem bifes e entremeada por essa Europa fora.
Seria quase criminoso abordar o tema anterior sem tocar no tópico “touradas” como, aliás, já o Daniel Deusdado tinha feito no seu artigo. Já tive oportunidade de escrever longa e repetidamente sobre esse tema, por isso convidar-vos-ei apenas a espreitarem estas linhas mais recentes e, aqui, limitar-me-ei a chamar a atenção para o facto de que, nos meus almoços de família (ribatejana de gema!), já não sou o único que considera aberrante que o acto de espetar ferros num mamífero sirva para vender bilhetes e gáudio de uma trupe simiesca que consegue ver beleza em algo no qual o resto do planeta só consegue ver dor inqualificável e injustificável. A luz ao fundo do túnel é o crescimento rápido da proporção da população que consegue ver a tourada pelo que é: um acto de uma barbaridade incompreensível e remeto-vos novamente para estas linhas, nas quais desmonto os argumentos da treta que alguns de vós já estão, de dedo espetado no ar, a elencar.
E pois claro que não se podia franquear a porta tauromáquica sem dar um alô ao (outrora) muito aplaudido João Moura, cujos dotes na manutenção da espécie canina nos surpreenderam a todos há mais ou menos um ano. Mais uma vez, a luz no espectáculo necromante que foi esta notícia, veio da reacção do público, que repudiou de forma enérgica, e violenta, as condições abjectas em que o grande “amante dos cavalos e dos touros” mantinha os desgraçados galgos que tiveram o azar de ir parar à sua guarda.
Termino com a luz mais brilhante de todas porque, apesar de vir do outro lado do Atlântico, mostra-nos que o diabo do processo democrático – que, convenhamos, às vezes consegue irritar – outras vezes funciona exactamente da forma que é suposto funcionar. Refiro-me, pois claro, aos números históricos da eleição norte-americana, que remove finalmente do poder um vigarista que, quando meter o pé fora da Casa Branca, terá de responder pelos muitos crimes económicos, sexuais, de abuso de poder e (muitos) outros que, alegadamente, tem cometido ao longo dos anos. Numa época em que voltamos a ouvir falar na mesma xenofobia que colocou no poleiro um pintor austríaco de bigode ridículo há quase cem anos, soube bem ver que largos milhões de votantes norte-americanos preferiram escolher quem se opunha a ideias tão disparatadas. Por outro lado, não deixa de ser perturbador que mais de 70 milhões de espécimes continuem a achar que esse é o caminho a seguir, mas, neste belo início de ano – com vacinas anti-covid-19 a serem administradas pelo mundo inteiro – concentremo-nos no #copomeiocheio e deixemos os chatos trumpescos monopolizarem a visão #copomeiovazio. Afinal de contas, estamos no início dum novo ciclo que pior do que o anterior não pode ser, por isso foquemo-nos nas muitas luzes que se vão vislumbrando nos muitos túneis que nos meteram à frente.
Antes de partir, o grande bardo canadiano, Leonard Cohen, deixou-nos preciosidades poéticas inesquecíveis. Das muitas que nos legou, há uma cuja sagacidade se adapta que nem uma luva ao tópico abordado nestas linhas e é com essas palavras imortais que me despeço e vos desejo a tod@s um 2021 pleno de saúde e, acima de tudo, felicidade, porque o resto aparece: “There is a crack in everything/That’s how the light gets in.”