A “banalização” da irresponsabilidade política
Corremos o risco de o Governo Costa ficar na história pela supina banalização da irresponsabilidade política. Um revés e um labéu graves para a democracia portuguesa.
1. É preciso insistir em algo que já sublinhei em vários artigos, designadamente aqui a 13 de Outubro. A ministra da Justiça e os seus defensores querem passar a ideia de que a competência para nomear o membro português da Procuradoria Europeia cabe ao Estado português. Repetem à saciedade que o candidato José Guerra ficou classificado em primeiro lugar na avaliação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Dizem-no como se a competência para a nomeação coubesse aos Estados-membros. Nada de mais falso. A competência para a nomeação do chamado Procurador Europeu não incumbe ao Estado nacional, mas sim ao Conselho da União Europeia.
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1. É preciso insistir em algo que já sublinhei em vários artigos, designadamente aqui a 13 de Outubro. A ministra da Justiça e os seus defensores querem passar a ideia de que a competência para nomear o membro português da Procuradoria Europeia cabe ao Estado português. Repetem à saciedade que o candidato José Guerra ficou classificado em primeiro lugar na avaliação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Dizem-no como se a competência para a nomeação coubesse aos Estados-membros. Nada de mais falso. A competência para a nomeação do chamado Procurador Europeu não incumbe ao Estado nacional, mas sim ao Conselho da União Europeia.
Se se defende que há uma hierarquização nacional que deve prevalecer, para que existe um “comité de selecção” europeu e porque se atribui ao Conselho da UE o poder de nomeação? Se haviam de ser as instâncias lusas a decidir, por que razão não se estabeleceu que cada Estado nomeava directamente o “seu” Procurador Europeu? Como, de resto, sucede com tantos outros “postos” europeus, que são de indicação directa do Estado-membro? Seguramente porque se trata de uma “procuradoria”, de um organismo que terá a seu cargo a investigação de fraude e de corrupção, e naturalmente se quer assegurar a independência e a imparcialidade em face dos governos e dos próprios Estados-membros enquanto tais.
2. Porque o poder de nomeação é europeu, o procedimento de selecção e recrutamento também há-de sê-lo. Assim, cada Estado apresenta uma lista de três nomes, que serão avaliados por um comité de selecção de peritos independentes a nível europeu. Este comité fará a avaliação e a graduação dos candidatos de cada Estado, propondo-a ao Conselho da UE.
O Governo português apresentou uma lista de três nomes, com base na lei portuguesa que regula o procedimento de escolha dos tais três candidatos (Lei n.º 112/2019). Ao invés do que se propalou, é a ministra da Justiça que faz a escolha dos três nomes com base numa pré-selecção de seis – três escolhidos pelo CSMP e três escolhidos pelo Conselho Superior da Magistratura (art. 13.º). É, pois, falso dizer que a ministra não tem intervenção na escolha dos nomes, pois é ela quem designa os três finais.
O Governo apresentou três candidatos, naturalmente porque os houve como idóneos e capazes para o exercício do cargo. A todos, sem excepção. Um júri europeu fez a avaliação respectiva e graduou-os. Se o Estado português propôs os três nomes, porque não se conformou com a selecção europeia? Será que ela só valeria se confirmasse a expectativa do Governo? Se, afinal, a escolha é nacional, para que serviu o procedimento de recrutamento europeu?
3. Diga-se, aliás, que a ideia de que o CSMP tem o poder de hierarquizar candidatos, substituindo-se aos órgãos europeus, não está prevista em lado algum! Com efeito, nenhum preceito da lei portuguesa se fala em graduação ou hierarquização das candidaturas. Nos termos da lei, que é a menina dos olhos da ministra, os Conselhos Superiores – os dois, não apenas o CSMP – deveriam simplesmente seleccionar três candidatos em total paridade e não graduá-los. O mesmo se diga da sempre invocada antiguidade, que é o que dá a suposta vantagem a José Guerra, a qual não podia ser nunca critério de avaliação (art. 14.º, 1, al. a)). Se ter 20 anos de experiência é requisito mínimo e pressuposto obrigatório para concorrer, a que título pode a antiguidade ser erigida em critério de avaliação? Com 20 anos garantidos, não há presunção de ampla experiência?
4. Estes são argumentos substanciais. Depois começa a tristíssima e penosa novela. Primeiro, uma carta com três erros, que passaram a lapsos e quase acabam em gralhas. Erros e lapsos poderia admitir-se um. Mas não dois. Não três! Não são erros: são falsidades. E falsidades convenientes. Dois ligados à experiência em investigação criminal (e, em especial, de fundos europeus) que se destinavam a tentar mostrar que o candidato Guerra podia competir com a candidata Almeida, lá onde ela lhe levava a palma. Já outro, relativo ao estatuto de Procurador-Geral Adjunto, que não é tão inocente quanto se pinta. O regulamento europeu pressupõe que os candidatos reúnam as condições para exercer o mais alto cargo do Ministério Público em Portugal. Requisito esse que correspondia exactamente à categoria de Procurador-Geral Adjunto. E nenhum dos candidatos portugueses tinha essa categoria. Ao dizer-se, na carta, que José Guerra era Procurador-Geral Adjunto está habilmente a sugerir-se que ele possuía um requisito que não foi valorado pelo comité de selecção.
5. É por demais evidente que a ministra não podia desconhecer esta diligência de alta diplomacia, dirigida ao Conselho de que ela faz parte e destinada a reverter a avaliação do comité europeu de selecção. Uma decisão tão grave e delicada – aliás, contestada por vários homólogos da ministra – tinha obviamente de passar por ela. Mas a ministra optou por endossar a responsabilidade para os serviços internos, como se de uma questão administrativa se curasse. Procurou convencer-nos que uma decisão europeia de alta sensibilidade política e até judicial não passava de intendência burocrática.
6. Tudo ruiu com o comunicado do director-geral de Política de Justiça. Diz taxativamente que nem ele nem os serviços tiveram responsabilidade, que recebeu instruções e que tudo era do pleno conhecimento do gabinete da ministra. E, sinal iniludível, insiste em que apenas pôs o lugar à disposição. Nunca diz que apresentou a demissão. O que, por um lado, mostra claramente que o próprio não se sente responsável e, por outro, que não se demitiu: foi convidado a demitir-se ou foi mesmo demitido.
7. Não sei o que a ministra fará com este processo lamentável. Mas corremos o risco de o Governo Costa – depois dos incêndios, de Tancos, do assassínio no aeroporto – ficar na história pela supina banalização da irresponsabilidade política. Um revés e um labéu graves para a democracia portuguesa.
Sim e Não
SIM Carlos do Carmo. Não é só o maior dos fadistas que parte. Um gigante da cultura, da música, das letras. Foi o grande “diseur” e intérprete da nossa língua. As palavras portuguesas “criaram-se” para que ele as cantasse.
NÃO Ministro da Administração Interna. Não é tolerável que os boletins de voto para as eleições presidenciais incluam o nome de um candidato não admitido. Para lá de surreal, é demasiado sério.