A hora da verdade: os farmacêuticos e a vacinação covid-19
Estamos a aceitar, tacitamente, que possa haver vacinas preparadas em condições de primeira e de segunda, levantando questões relevantes de segurança, qualidade e equidade. Haverá coragem dos diferentes intervenientes em jogo para mobilizar recursos farmacêuticos qualificados, de modo a evitar tal situação?
1. O início da vacinação contra a covid-19 veio pôr em relevo o papel, normalmente esquecido, dos Serviços Farmacêuticos Hospitalares (SFH), mormente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas também nos sectores privado e social. Apesar de estarem dotados de plena autonomia técnica e científica, em concordância com o carácter liberal e auto-regulado da profissão farmacêutica, o facto de serem considerados serviços “de retaguarda” ou “de apoio”, bem como o número diminuto de profissionais a eles afectos (no conjunto dos trabalhadores do sector da saúde), tem levado a que ainda hoje, de forma geral, se desconheça a sua importância.
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1. O início da vacinação contra a covid-19 veio pôr em relevo o papel, normalmente esquecido, dos Serviços Farmacêuticos Hospitalares (SFH), mormente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas também nos sectores privado e social. Apesar de estarem dotados de plena autonomia técnica e científica, em concordância com o carácter liberal e auto-regulado da profissão farmacêutica, o facto de serem considerados serviços “de retaguarda” ou “de apoio”, bem como o número diminuto de profissionais a eles afectos (no conjunto dos trabalhadores do sector da saúde), tem levado a que ainda hoje, de forma geral, se desconheça a sua importância.
2. Não surpreende totalmente, pois, a estranheza manifestada por muitos relativamente ao facto de a preparação das vacinas estar a cargo dos SFH. Contudo, requerendo esta vacina um processo de manipulação, legalmente definido como acto farmacêutico (ou por colaborador legalmente habilitado sob a sua directa supervisão), a surpresa perde razão de ser. No caso da vacinação covid-19, os SFH têm cumprido, em geral, de forma notável, a sua missão, sem prejuízo da restante actividade assistencial.
Tal não invalida que existam ainda SFH (cada vez menos, felizmente) que em condições normais não garantem um funcionamento adequado do circuito de produção de medicamentos. Há certamente razões para isso, e algumas inteiramente legítimas: realce-se a crónica falta de recursos humanos qualificados e o equívoco de desvalorizar o seu papel, em que persistem alguns (poucos?) Conselhos de Administração. Contudo, seria ingénuo escamotear a responsabilidade de uma minoria de colegas farmacêuticos que, em vista de circunstâncias desfavoráveis, optaram pelo caminho mais simples do acomodamento, descurando a formação contínua e não definindo objectivos de desenvolvimento (certamente que ajustados às realidades locais) para os seus SFH.
Deparamo-nos, assim, com uma questão espinhosa: neste momento, para garantir a segurança dos vacinados em algumas unidades hospitalares, os SFH têm que ceder a execução técnica da reconstituição da vacina a outros profissionais, por falta de recursos treinados. Sendo excepções, garantir-se-á sempre o mal menor da supervisão farmacêutica (certamente limitada pelos condicionalismos acima expostos), de modo a salvaguardar a segurança do circuito do medicamento – aspecto de responsabilidade e formação exclusivas dos farmacêuticos. Mas que não restem dúvidas: é uma situação indesejável e que não deve repetir-se no futuro.
3. Do ponto anterior, resulta ainda a justa interrogação sobre a garantia dos parâmetros de qualidade da manipulação da vacina em locais como as unidades de Cuidados de Saúde Primários (CSP) e as Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI). Obviamente, os farmacêuticos que trabalham nas Administrações Regionais de Saúde e nas Unidades Locais de Saúde não têm capacidade para satisfazer todas as necessidades dos CSP e das Unidades de Cuidados Continuados. De igual modo, os farmacêuticos comunitários que, dentro da sua disponibilidade, colaboram com diversas ERPI na gestão do medicamento, não conseguirão assegurar cabalmente a tarefa da vacinação. Resulta daqui que estamos a aceitar, tacitamente, que possa haver vacinas preparadas em condições de primeira e de segunda, levantando questões relevantes de segurança, qualidade e equidade. Haverá coragem dos diferentes intervenientes em jogo para mobilizar recursos farmacêuticos qualificados, de modo a evitar tal situação?
4. Não perderei muito tempo a discutir a questão da possibilidade de vacinação contra a covid-19 nas farmácias comunitárias, nomeadamente na terceira fase. Têm sido esgrimidos argumentos de vária índole, desde considerações técnico-científicas a razões ideológicas. Contudo, depois do lamentável processo da vacinação da gripe, com uma tentativa de diluição de responsabilidades por diferentes entidades, está criado um ambiente de desconfiança entre os decisores políticos e os farmacêuticos comunitários de difícil resolução, não facilitando o seu envolvimento futuro na vacinação covid-19. Acresce ainda o facto de que os farmacêuticos comunitários não poderão aceitar, na base do voluntarismo e da boa vontade, soluções improvisadas que ponham em causa o cumprimento de exigentes critérios técnico-científicos e do cumprimento das suas exigências deontológicas.
5. Talvez sem que muitos o previssem, a vacinação contra a covid-19 veio, desta forma, pôr os farmacêuticos perante os desafios do futuro.
A nível hospitalar, evidencia-se a necessidade urgente da plena concretização da Carreira Farmacêutica no SNS e, paralelamente, o desenvolvimento da Residência Farmacêutica (RF), instrumento de formação específica análogo ao internato médico. Espera-se que o mapa de idoneidades da RF, em análise, não seja um mero mapa, mas que se comece a pensar a Farmácia Hospitalar em Portugal em termos de redes de referenciação. Nem todos os SFH poderão ter o mesmo grau de diferenciação, mas temos que garantir equidade no acesso a todos os cidadãos, em termos de assistência farmacêutica (nomeadamente no SNS).
Tal desiderato não poderá significar um relaxamento nos padrões mínimos de assistência farmacêutica nos hospitais mais pequenos – por exemplo, em termos de consulta farmacêutica ou no que respeita ao circuito da produção de medicamentos. Para dar um exemplo: nem todos os SFH poderão preparar nutrição parentérica, mas parece-me fundamental que todos eles tenham uma câmara de fluxo laminar pronta a funcionar, de acordo com as necessidades.
E talvez seja finalmente o momento de revisitar o Regime Jurídico da Farmácia de Oficina (2007), que na sua aparente liberalização apenas veio regularizar algumas situações de facto, não tendo contribuído em nada para a mudança de modelo de valorização das farmácias comunitárias e dos seus farmacêuticos. Continua-se, como há trinta ou quarenta anos, a remunerar com base no produto e não no serviço.
É a hora da verdade para os farmacêuticos portugueses: estão dispostos a enfrentar a realidade neste momento decisivo para a profissão?