Os “grandes museus” perante o mundo que aí vem

Entre os cerca de 100 mil museus que existem no mundo, dos quais quase metade na Europa, os “grandes museus” foram certamente os que mais sofreram com a crise de covid-19.

Começamos a ver uma luz ao fundo do túnel. Por isso, o ICOM Europa entendeu ser chegada a hora de promover um ponto de situação sobre o que no ano finado aconteceu aos “grandes museus” europeus e que rasto poderá ter deixado para o futuro. Tal será realizado em Março próximo, ainda através de vídeo-conferência, hélas, juntando ao mais alto nível oradores de cerca de uma dezena dos mais visitados museus do continente em 2019. No entretanto, importa observar os dados empíricos existentes. E estes não iludem.

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Começamos a ver uma luz ao fundo do túnel. Por isso, o ICOM Europa entendeu ser chegada a hora de promover um ponto de situação sobre o que no ano finado aconteceu aos “grandes museus” europeus e que rasto poderá ter deixado para o futuro. Tal será realizado em Março próximo, ainda através de vídeo-conferência, hélas, juntando ao mais alto nível oradores de cerca de uma dezena dos mais visitados museus do continente em 2019. No entretanto, importa observar os dados empíricos existentes. E estes não iludem.

Entre os cerca de 100 mil museus que existem no mundo, dos quais quase metade na Europa, os “grandes museus” foram certamente os que mais sofreram com a crise da covid-19. E, dentro deles, os que em passado recente mais tinham caminhado ao som das trombetas do mercado — caminho que alguns seguiram convictamente e outros apenas por força das circunstâncias: não é só em Portugal que o decréscimo significativo dos orçamentos públicos e a absoluta necessidade de maior autonomia estratégica conduziram a situações de “apagada e vil tristeza” tais que esses museus se sentiam vegetar, senão, definhar. Confiantes na sua boa mercadoria, supuseram esses museus que o princípio do “cada um trata de si” necessariamente os beneficiaria, dentro do paradigma de que o valor das coisas se mede pela disposição que existe em pagá-las, seja no acto de consumo (através da bilheteira), seja por via do patrocínio mecenático e da chamada “responsabilidade social” das empresas. Em alguns casos, com o beneplácito de governos, envergonhado no caso dos social-democratas, entusiasmado no caso dos neoliberais, chegaram a quase “arrendar” colecções públicas de referência mundial, com enorme aplauso dos “promotores de eventos”, que assim viram alargar o campo de negócio. Aqui, cederam peças a troco de petrodólares (caso do Louvre de Abu Dhabi), ali inventaram pseudo-exposições, a troco de euros, muitos euros (caso da gestão privada do Museu Van Gogh, que passou a promover “experiências imersivas” um pouco por todo lado: ainda hoje temos os despojos de uma no Terreiro das Missas, em Belém…).

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Difundiu-se, como pandemia, a ideia de fazer dinheiro a todo o custo, depressa e muito, usando as ferramentas do mundo do show business e em especial dos parques temáticos: foco no turismo de massas e no entertainment, exposições-espectáculo, cheias de grandes mestres mas parcas de nova investigação sobre os mesmos (blockbusters, se lhes chamaram), muita itinerância e rodos de pirotecnia.

Ao seguir esta via os “grandes museus” cometeram, todavia, um pecado capital. Aceitaram desnaturar-se, competindo no terreno das cópias, banalizando os seus originais, feitos atracções de feira em feira (ou até dentro de portas). Ora, o mundo dos museus em geral, e por maior razão o dos “grandes museus”, é o mundo do único e insubstituível, um mundo em relação ao qual não somente se aceita como se cultiva algum distanciamento, induzido pela “aura” dos objectos e dos locais onde se guardam, quais montanhas que mal se movem e obrigam maomés a deslocar-se. Não é o mesmo ver as obras de Miguel Ângelo ou Leonardo da Vinci na “bela Itália” (ou num qualquer antigo palácio real tomado pelo povo) do que em centro comercial de ignota cidade do Texas ou em edifício-estrela de Singapura. E se o que se oferece forem representações digitais, então, por espampanantes que sejam, mais fica obliterada a função social específica do ser museu — a sua “relevância”, com é de bom-tom agora dizer.

Ora, o que a grande maioria dos que deambulam pela Europa, sejam europeus ou não, querem mesmo ver são originais nos seus sítios. Com alguma informação, certamente. Mas, no limite, originais apenas, quiçá mudos na algidez de quadros pendurados em paredes, ou incompletos, na condição de ruínas. Não são recriações ou espectáculos multimédia que aí procuram, por muito que estes seduzam e possam circunstancialmente criar filas à porta.

Os números, na sua crueza, não enganam. O “Global Attractions Attendance Report”, meritório esforço desenvolvido pela consultora americana AECOM, através da “Themed Entertainment Association” (TEA), vem consistentemente demonstrando, em já uma década, que os grandes shows de animação, ditos “luna-parques”, não são definitivamente o terreno de afirmação europeia. Em 2019, a Europa contribuiu com somente 7% do total de 218 milhões de visitantes dos vinte mais frequentados parques temáticos no mundo. Já quanto aos 20 mais visitados museus no mundo, os europeus representavam 53%, num total de 101 milhões.

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Observado arco temporal maior, obtêm-se ensinamentos ainda mais curiosos. No início da década que ora termina, os dados eram idênticos aos actuais (v. a nossa análise na ARTECAPITAL). Era um tempo em que 10 dos 20 mais visitados museus no mundo eram europeus, com o Louvre à cabeça. E só um parque temático estava na Europa, sendo aliás um franchising americano (o Eurodisney) e tendo menos visitantes do que o Louvre. Já em 2016, os valores europeus mantinham-se idênticos no caso dos parques (7%), mas tinham decrescido significativamente (39%), no caso dos museus. Dos cinco mais visitados museus desse ano, apenas um era europeu (Louvre, em terceiro lugar), tendo os chineses feito vertiginosa entrada na lista (o mais visitado no mundo nesse ano foi o Museu Nacional da China).

O que nos dizem agora os números é que foi o segmento dos museus aquele que na Europa melhor resistiu, e até neutralizou, a invasão chinesa, algo de enorme significado, tanto mais que outro tanto não acontece com os museus norte-americanos. A comparação entre as posições em 2016 e 2019 é muito esclarecedora, de tal modo que nesta última data três dos cinco mais visitados foram europeus (Louvre, de novo em primeiro lugar, Vaticano e Tate Modern). E vale a pena ainda notar que do conjunto dos oito museus europeus constante desta lista, nenhum é dos que em anos recentes enveredaram mais audaciosamente pelos caminhos da “gestão moderna” (leia-se agressivamente e de mercado), sendo outrossim a maioria de gestão pública mais ou menos “tradicional”. Dá-se até o caso de outros com práticas de gestão mais mercantis terem em termos relativos descido, a ponto de não constarem do top 20 mundial (caso do Prado ou do Van Gogh, por exemplo).

Diz o povo que nem tudo o que luz é ouro. E seguramente não são ouro os indicadores de curto prazo em museus. Aproveitemos, pois, este tempo sem tempo para pensar e, por maioria de razão tratando-se de museus, para nos recentrarmos naquilo que é essencial. Às vezes há males que vêm por bem, diz igualmente o povo, na sua consabida sabedoria.