O coração ainda bate. Os livros
Um dia na televisão a cores vi o filme de Truffaut* onde os bombeiros queimavam livros a 451 graus Fahrenheit e a leitura estava proibida, porque os livros, já se sabe, podem ser uma arma dentro da nossa cabeça. Um escape perigoso. Uma libertação. Uma armadilha.
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A carripana de folha ondulada tinha uma cor estranha: um cinzento do passado, quando o passado era a preto e branco e a televisão a cores também tardava em chegar lá a casa.
Lembro-me desse dia em que tirámos do caixote aquele bloco com enigmáticos botões que nos ligariam ao exterior já sem nos dar uma visão daltónica do mundo. Ligarei a televisão daqui a pouco. Deixem-me voltar à carripana.
A carripana é do tempo em que nunca me ocorreria chamar-lhe carripana. Quando ela chegava, eu estava pronta a entregar o aluguer anterior. Então, subia as escadinhas estreitas e aquele cubículo alcatifado ganhava uma dimensão que, na minha cabeça, parecia enorme: os livros estavam bem alinhados, mesmo que as capas tivessem a marca de muitas leituras, de muitos lugares, de todas as mãos que neles pegaram. Para mim era um momento solene: a entrega dos livros que eu tinha consumido em poucos dias e a requisição dos novos (com caneta presa por um fio) que me obrigariam à mesma e repetida leitura até à próxima visita. O aviso estava escrito no cartão que guardávamos e que íamos perdendo, mas falhar a visita da carripana era imperdoável e eu precisava da leitura para, sem sair do sítio, viajar para outros lugares.
Do amontoado de papelão e esferovite emergiu a nossa outra ligação ao exterior. A televisão a cores chegara e nós entravámos na sala que cheirava a novo também por trazer a novidade.
A televisão e a carripana unem-se nesta história que fala de livros. Na minha tabela cronológica vou fazer coincidir ambos porque é a importância dos factos que define o momento.
Um dia na televisão a cores vi o filme de Truffaut* onde os bombeiros queimavam livros a 451 graus Fahrenheit e a leitura estava proibida, porque os livros, já se sabe, podem ser uma arma dentro da nossa cabeça. Um escape perigoso. Uma libertação. Uma armadilha. Eu não sabia que filme era aquele e estava sozinha a vê-lo na televisão a cores. O fogo que consumia os livros e a liberdade, deixaram-me a pensar como poderia eu viver num mundo assim. Eu que esperava ansiosamente pela carripana como se ela fosse uma agência de viagens ambulante.
Muitos anos passados retenho do filme a imagem das pessoas que privadas da leitura decidiram decorar um livro. Se fossemos um livro, que livro seríamos? Que livro poderíamos decorar que suportasse o nosso pensamento sem o comprometer? Que respeitasse a nossa identidade, ou, dando-nos outra, fosse o nosso discurso? O filme de Truffaut (que só muito mais tarde descobri ter sido feito a partir da obra de Ray Bradbury) veio confundir-me. Imaginei a carripana consumida pelas chamas e a minha possibilidade de ser feliz aniquilada numa fogueira que ardia para condenar a nossa liberdade.
A metáfora dos livros persegue-me num mundo que atiça fogueiras virtuais e vai queimando lentamente pequenas liberdades. Ou chamo-lhe sonhos?
Um dia a carripana deixou de vir. Só muito mais tarde percebi a importância que aquela visita constante teve na minha vida. A forma como me habituei a ler quando não havia dispersão e aqueles livros eram os amigos que não tinha. Isso e a televisão a cheirar a novo, porque nessa altura, os dois mundos não colidiam. Essa era a altura em que uma miúda podia querer ler mais livros por ter visto um filme daqueles, ou precisar do cinema para novas leituras.
A carripana de folha ondulada, de um cinzento passado, não foi abalroada pela televisão a cores. Complementavam-se. Eu esperava pelo serão com filmes ou pela chegada dessa Biblioteca Itinerante* com a mesma vontade.
Hoje, a minha dispersão é imensa, mas a memória continua nítida. Cabem nela todos os livros que li e os filmes que guardei.
*Grau de Destruição – François Truffaut
*Biblioteca Itinerante da Gulbenkian