Os primeiros ateliers municipais do Porto são uma “folha branca em que se vai desenhando”
O primeiro pólo do projecto fica junto ao Túnel da Ribeira e já está a ser ocupado por seis artistas que ali terão os seus espaços de trabalho nos próximos três anos, pagando rendas entre 50 e cem euros.
Vera Mota leva mais de 15 anos de trabalho, os últimos cinco passados num atelier que parecia encolher devido ao amontoado de papeladas, ferramentas e trabalhos ali armazenados para a sua prática artística. Habituada a manipular materiais de grande porte como metal e mármore, viu na candidatura aos Ateliers Municipais uma oportunidade de ganhar espaço físico e mental. “Com o passar dos anos, as coisas vão-se acumulando e esta iniciativa permite-nos fazer uma espécie de reset”, introduz a artista, que faz parte do grupo de seis criadores seleccionados para ocupar o pólo inaugural do projecto.
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Vera Mota leva mais de 15 anos de trabalho, os últimos cinco passados num atelier que parecia encolher devido ao amontoado de papeladas, ferramentas e trabalhos ali armazenados para a sua prática artística. Habituada a manipular materiais de grande porte como metal e mármore, viu na candidatura aos Ateliers Municipais uma oportunidade de ganhar espaço físico e mental. “Com o passar dos anos, as coisas vão-se acumulando e esta iniciativa permite-nos fazer uma espécie de reset”, introduz a artista, que faz parte do grupo de seis criadores seleccionados para ocupar o pólo inaugural do projecto.
A entrega das chaves para os ateliers, quatro nos Ateliers da Lada e dois no espaço adjacente do Apartamento da Ribeira, coincidiu com o período de preparação de uma exposição sua a inaugurar em Janeiro, em Lisboa. Como está a produzir trabalho novo, Vera ainda não conseguiu empacotar o anterior e mudar-se para o espaço atribuído – com uma área de 45,8 m², é o mais amplo de todos, resultado da primeira classificação no concurso. Aquando da visita do PÚBLICO, o atelier de Vera permanece vazio e imaculado, por isso não há como ficar alheio à vista privilegiada sobre o rio Douro, a ponte Luís I e o pitoresco casario em redor.
“É um privilégio estar no centro histórico e poder fazer um percurso maravilhoso até ao atelier”, reconhece Vera Mota sobre a envolvente que “certamente terá reflexos na produção artística”. A possibilidade de estabelecer novas relações com a cidade e a comunidade é uma troca vital para ambas as partes, concorda Laetitia Morais. A artista plástica, também investigadora em práticas artísticas na Suíça e na Áustria, refere que é “do interesse da cidade ter artistas a ocupar lugares que [nos últimos anos] ficaram absolutamente turísticos e perderam algum carácter”.
A nova vida da vizinhança
Nesse sentido, a construção de uma “dinâmica comunitária” pode ser regeneradora para o tecido social, artístico e cultural do Porto. Por um lado, a vizinhança entre ateliers possibilita uma “maior proximidade entre artistas” e uma “discussão mais frequente de ideias”, assinala Vera. Por outro, sublinha Laetitia, há “uma vida que é gerada [pela presença dos artistas nesta zona]” e que pode ser impulsionadora de iniciativas de abertura dos estúdios aos portuenses, artistas ou não.
Para a Câmara do Porto, a disponibilização de ateliers com rendas acessíveis – com valores mensais entre os 50€ e os 100€ consoante a área – por um período de três anos é a “peça que faltava dentro de uma política maior de apoio à prática artística, em particular das artes visuais [que tem sido desenvolvida nos últimos anos]”, observa Guilherme Blanc, director artístico do departamento de Cinema e Arte Contemporânea da empresa municipal Ágora – Cultura e Desporto.
Os Ateliers Municipais fazem parte da plataforma InResidence, que “aproxima artistas e oportunidades de trabalho, na área das artes visuais e demais disciplinas artísticas, em espaços da cidade do Porto”, e que agrega, ainda, os Espaços de Residência, que oferecem a “artistas nacionais e internacionais diferentes oportunidades de residência artística com alojamento incluído”. O projecto complementa, assim, o esforço estratégico encetado pelo município para estimular a criação e programação artísticas através de programas como Criatório e Shuttle, que já contam com várias edições. “Achamos importante ter espaços como estes cá, à semelhança de outras cidades da Europa”.
A necessidade de apoiar artistas com currículo nacional e internacional extenso, como é o caso de Vera e Laetitia, e não afunilar este tipo de acções para criadores emergentes, é sintomática da invisibilidade a que a arte sempre esteve sujeita nas políticas públicas. “É uma pena que, ao fim de 15 anos, não haja condições para não precisarmos de concorrer”, problematiza Vera Mota. Para esta escassez de recursos contribui também o carácter ingrato da própria profissão, dependente de “vendas que são muito raras e bolsas pontuais que quase nunca financiam projectos na totalidade”, clarifica Laetitia Morais.
A cidadania antes da arte
Ambas assumem a “postura cada vez mais consciente” da cidade face às dificuldades da classe artística e o “valor deste conjunto de iniciativas”, mas admitem que é necessário garantir um “investimento contínuo, transversal e sustentável” nos apoios prestados. “Mesmo que bons, os apoios são insuficientes porque já nascem pontuais”, nota Jaime Lauriano, artista brasileiro que se mudou para o Porto em 2019 e que trabalha entre o Porto, São Paulo e Berlim. O papel do artista na sociedade, sublinha, é precisamente “reconhecer os défices, além das qualidades”. “Acima da arte tem a questão da cidadania e, como cidadãos, temos de buscar sempre a melhoria dos serviços públicos”.
A luta por melhores condições pode iniciar-se em contextos particulares como os Ateliers, uma vez que a experiência da primeira fornada de artistas vai permitir avaliar virtudes e lacunas no funcionamento dos espaços e aprimorá-los para o futuro. Os primeiros inquilinos, que cruzam áreas tão díspares como desenho, pintura, escultura, vídeo ou instalação, sentem falta de pormenores como uma “pia grande para trabalhos mais sujos” ou “um espaço exterior para manejar tintas tóxicas”. Mas lembram que “os artistas têm o músculo da adaptação bem desenvolvido”. “O que acontece ali dentro é um embate entre a nossa escala e a escala do espaço”, reitera Vera Mota.
A interdisciplinaridade, versatilidade e complexidade da arte contemporânea transformam o atelier num lugar de “experimentação, reflexão e investigação”, mais do que num caos convencional de tintas e pincéis. “É igual à folha branca de um caderno, tem uma estrutura e depois vai-se desenhando”, remata Jaime Lauriano. Até ao final de 2022, deverão estar a funcionar os restantes ateliers do projecto, quatro previstos para a CACE Cultural do Freixo e nove para o antigo Matadouro Municipal, na Corujeira.