O “milagre português” e a hipocrisia dos inocentes
A ironia desta doença, as características do seu contágio e a robustez da ciência que temos nas mãos são infinitamente mais fortes do que o que “Deus quiser” e o “desejar com muita força” juntos. Com a ciência não se discute. Mas nós quisemos discutir.
O primeiro-ministro achou por bem não contrariar as emoções dos portugueses e decidiu dar bar aberto à época das festas, acrescentamos a isso a eloquência de um senhor que reduziu o Natal a uma troca de compotas no vão das escadas, e com o Presidente da República a assumir que ia ter no seu Natal uma equipa inteira de futebol americano (eu sei que desdisse, mas o que fica dito não perde a força) e temos todos os condimentos para o “milagre português”.
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O primeiro-ministro achou por bem não contrariar as emoções dos portugueses e decidiu dar bar aberto à época das festas, acrescentamos a isso a eloquência de um senhor que reduziu o Natal a uma troca de compotas no vão das escadas, e com o Presidente da República a assumir que ia ter no seu Natal uma equipa inteira de futebol americano (eu sei que desdisse, mas o que fica dito não perde a força) e temos todos os condimentos para o “milagre português”.
E quando entregamos o destino ao que “Deus quiser” e desejamos com muita força que corra bem, sentimos muita alegria no ar. Alegria esta que nos está a faltar à alma como pão para a boca. Mas a ironia desta doença, as características do seu contágio e a robustez da ciência que temos nas mãos são infinitamente mais fortes do que o que “Deus quiser” e o “desejar com muita força” juntos. Com a ciência não se discute. Mas nós quisemos discutir, conversar, trocar opiniões, gargalhadas e outras palhaçadas à volta de mesas de dez, 20, 30 e por aí fora, em almoços, almocinhos, jantaradas e trocas de compotas, a ver se o vírus respeitava o Natal e já agora a Passagem de Ano, fechando os olhos apenas a uma semanita ou duas.
Adivinhe-se o que aconteceu? O vírus não acredita em Deus, nem leu as cartas ao Pai Natal, até porque mesmo na Suécia a comunicação antifestas covid foi bem mais dura. E “estranhamente” os números subiram a pique e vão continuar a subir, o que quer dizer que mais mortes vão ser choradas que não precisavam de o ser. Mais sobrecarga nos serviços de saúde que estão a rebentar, e mais tempo até que a economia endireite com todos os dramas sociais que isso acarreta.
E depois dizem-me: “Ai, isso não é nada humanitário estar a acusar as pessoas e pô-las umas contra as outras!...” Pois, eu encaixo todas as críticas e ainda encaixo insultos e ameaças, mas sigo firme na minha humilde opinião. Ser humanitário, ser humanista é pensar no bem comum, é ter a coragem de assumir comportamentos que a mim também me deixam triste, mas vivo a pensar que a minha vida não vale mais do que as outras. E não sendo eu um crente na divindade de Jesus Cristo, diria que a celebração da sua vida não deveria ter sido marcada pelo egoísmo dos que se sentem mais sábios que a ciência, porque se houve mensagem que eu retive da sua passagem por esta vida, foi a empatia, a compaixão, a projecção do outro em mim. E não há nada mais bonito do que isso.
Ainda há dúvidas que são estes comportamentos que atiram milhares de doentes para os hospitais? “Ó pá, mas tu és um pessimista! Não deixas ninguém viver!” Não é verdade. Eu também vivi a passagem de ano com muita gente. E muito boa gente, uma unidade de Cuidados Intensivos cheia de doentes covid e não-covid, e com as filas para testes novamente cheias de pessoas com sintomas à proporção dos almoços e jantarezinhos que todos fizeram, mas ninguém sabe quem fez. “Eu portei-me bem”, “Eu fiz um teste”, “Eu só estive com os meus amigos depois do Natal”, “A minha avozinha queria estar com os netos.”, “Eu estou sempre com as mesmas pessoas”... Que, por sua vez, também estão sempre com as mesmas pessoas, e como tal, não foi ninguém. É a hipocrisia dos inocentes.
“Pá, podias-me saber como que está a mãe de um amigo meu que está nos Cuidados Intensivos?”, “Vim trabalhar, e estou com febre e perdi o olfacto, o que é que achas que eu devo fazer?”, mas já todos sabemos tudo sobre a pandemia, e depois 80% dos contágios não são identificáveis, porque realmente a ignorância anónima de gente que sabe ler e escrever, é difícil de contabilizar.
- Registar os que não se querem vacinar pelo bem comum? “Isso é um atentado às liberdades!”.
- Culpabilizar as pessoas pelos seus comportamentos? “Deve ser anticonstitucional!”
- Criminalizar urgentemente a desinformação que mata? “Ai, isso deve dar muito trabalho!.
- E a campanha de comunicação do SNS que explica que os descuidos levam a internamentos nos Cuidados Intensivos? “Ai, isso é de um mau gosto indescritível!”
O que está “certo” é permitir o maior paradoxo da justiça, onde os que cumprem, que respeitam a vida alheia, que respeitam o outro, que respeitam a crise social e económica devastadora, se sintam gozados, desrespeitados e com vontade de desistir, tal como muitos profissionais de saúde que mesmo após ver a magia da ciência a acontecer em forma de vacina, sentem que o “milagre português” e a hipocrisia dos inocentes nos vai obrigar a ver muita boa gente a morrer que não precisava de ser tão cedo nem sozinhos nos hospitais, se não tivessem feito aquele jantarzinho que vai deixar alguns com uma culpa avassaladora para o resto da vida.
Ah! Ia-me esquecendo: um brinde e “saudinha para o Ano Novo”.
Pode ser que corra bem. Se correr mal, não foi ninguém.
P.S.: Sr. primeiro-ministro, a mediana do tempo de incubação está nos 4-5 dias.