A verdade partilhada, arma determinante para o combate à covid-19
Que desde já fique claro que não podemos fingir saber o que não sabemos. Dizer a verdade desde a primeira hora é uma arma da qual não podemos prescindir.
Ninguém com bom senso pode invejar os políticos que têm a obrigação de arcar com a decisão da melhor forma de combater a covid-19. Confrontados com um novo vírus e o desconhecido, as omissões, erros e contradições eram inevitáveis para todos.
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Ninguém com bom senso pode invejar os políticos que têm a obrigação de arcar com a decisão da melhor forma de combater a covid-19. Confrontados com um novo vírus e o desconhecido, as omissões, erros e contradições eram inevitáveis para todos.
Mas o seu maior erro poderia ter sido minorado e vai causar-nos problemas: fingir sempre saber mais do que sabiam ou exigir aquilo que ninguém podia dar – conhecimento profundo.
Desde o início, sob a pressão implacável de uma mídia impreparada e agressiva, os governos mostraram uma certeza injustificada sobre a qualidade e mérito das suas decisões políticas. Então, quando as circunstâncias e o saber entretanto modificados obrigavam a uma mudança de rumo, eles explicavam a nova direção com a mesma certeza e determinação que a anterior. Depois de várias alterações no discurso e nos atos, a confiança das pessoas diminuiu de forma importante. E a confiança na liderança política é sempre determinante – especialmente quando é necessária a sua colaboração – e principalmente agora, quando começam a ser chamadas para a vacinação.
Muitos governos basearam as suas falsas certezas na obrigação de se submeter ao saber dos especialistas ou de confiar “na ciência”. (E muitos cientistas, alguns “recentes ou improvisados”, ficaram muito felizes em serem cooptados para esse objetivo.)
Seis dias antes da eleição, o Presidente eleito Joe Biden dizia: “Eu acredito na ciência. Donald Trump, não. É simplesmente isto.” Mas infelizmente não é. A ciência do novo coronavírus e a doença que causa, tal como as interações e complicações que esta pode determinar, estão ainda por conhecer. E a questão de como melhor conter as infeções não seria exclusivamente científica, mesmo se tudo sobre o vírus fosse conhecido. A solução e decisão final é, de facto, inevitavelmente política. Porque existem a economia, a resposta a expectativas e a resistência limitada dos serviços de saúde e as decisões quanto à gestão de todas elas são de ordem política. Tudo somado, resultam decisões muitas vezes contraditórias que questionam a confiança e, como resultado, apenas tornam o desafio e trabalho da política ainda mais difícil.
Para nenhum país foi fácil enfrentar e gerir a pandemia. Mesmo aqueles que o fizeram melhor, como Taiwan, Coreia do Sul e a Nova Zelândia, tiveram contratempos. Os caminhos alternativos suecos estão a mostrar a outra face. O agravamento em toda a Europa está a acontecer apesar de fortes restrições, do conhecimento atual e do confinamento relativo. A Finlândia, Dinamarca e Grécia estavam muito bem no final do primeiro impacto; todos agora têm um aumento exponencial de casos e mortes. O nosso país, a França, Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido estão a sofrer de forma acentuada e os EUA continuam a estabelecer novos recordes de infetados e fatalidades.
Os resultados diferentes, no momento, entre países não têm ainda explicação plausível. Os países ricos da Europa aparentemente tiveram um desempenho pior do que muitos países pobres de África. Singapura teve muito mais casos do que a Coreia do Sul, mas só uma trintena de mortes. Aparentemente, entre nós, a letalidade é também muito mais intensa a norte do que a sul do país. O próprio conceito de um “caso” de covid-19 é indefinido – significa que uma pessoa teve um teste positivo sem esclarecer se foi infeção ou doença e que tipo de doença. Para complicar ainda mais o vírus acaba de mutar, deixando interrogações ainda maiores.
A política nestas circunstâncias está condenada a ser um processo de tentativa/erro. Ao decidir até que ponto restringir as liberdades individuais e as atividades económicas a fim de suprimir o vírus, os líderes políticos têm obrigatoriamente de ponderar muitos fatores. Ouvir, perguntar e desafiar os consultores científicos faz parte do processo de decisão; achar que “a ciência” lhes dá as soluções completas, não faz.
A tentativa/erro, assumidos de forma aberta, podem pelo menos tentar ser metódicos. Em vez disso, a tendência em muitos países tem sido a instituição de regras cada vez mais complexas, contraditórias e em constante mudança que só agravam o problema da credibilidade.
Portugal e outros países europeus estão agora divididos em vários níveis de risco e restrições sendo, entre nós, quatro níveis de risco e três de restrições.
A declaração de estado de emergência tem-se vindo a repetir e a variar, consoante o número de infetados dos últimos 14 dias, os níveis de restrições por concelho.
O significado de “confinamento” também variou amplamente de país para país – com alguns restringindo o andar no exterior e outros não. A covid-19 é a mesma doença em todos os países e cada um está a fazer de modo diferente e a fazer caminho caminhando.
No final, parece que as medidas mais eficazes para derrotar o novo coronavírus são, na verdade, pré-científicas – os remédios seculares de separação (“distanciamento social”), máscara (controversa inicialmente), quarentena e fecho de fronteiras. Isso foi mais fácil para países como Taiwan e Nova Zelândia do que para os países Europeus. A contribuição crucial e realmente notável da ciência não foi projetar medidas de bloqueio baseadas em previsões pouco confiáveis, mas em desenvolver vacinas em tempo recorde que prometem um retorno a uma vida mais normal a partir de 2021.
É provável que leve algum tempo até termos uma avaliação distanciada da melhor forma de conter a propagação deste tipo de doenças. Só nesse momento poderemos tirar lições para o futuro. Mas não há dúvida que os governos decidiram muitas vezes mal e foram lentos na tomada de medidas. No entanto, essa é a natureza da tomada de decisões sob pressão tendo por base a incerteza.
Duas conclusões, no entanto, podem, desde já, ser tiradas. Primeiro, as pandemias vão ocorrer novamente e precisamos estar melhor preparados para a próxima. Em segundo, fechar as fronteiras até que o surto inicial seja controlado pode ser a medida mais importante para prevenir a propagação de um novo vírus. Um acordo internacional para fornecer ajuda financeira, sanitária ou de outra natureza a um país no qual um novo vírus é identificado em troca do fecho imediato das suas fronteiras pode ser um passo importante, embora nada fácil. Mas isso permitiria a outros países evitar o fecho de fronteiras e o bloqueio das economias.
Mas que desde já fique claro que não podemos fingir saber o que não sabemos. Dizer a verdade desde a primeira hora é uma arma da qual não podemos prescindir ("Covid e fogo florestal”, PÚBLICO, 10/09). Exige saber, estudo e autoconfiança intelectual para assumirmos de forma clara o que, e o que não, sabemos. Mas parece estar patente que, quando o pedido de colaboração é a tomada da vacina, é esse tipo de honestidade que o interesse público tinha exigido.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico