Poderia Peter Jackson mostrar-nos um outro 2020?
Só unindo as duas facetas de 2020, o que de mau e bom sucedeu, teremos o ano completo. Ver apenas uma é amputar a realidade.
Vigiar mas não exagerar, era a mensagem que nos chegava de Bruxelas em meados de Fevereiro. Do encontro dos ministros da Saúde dos 27, então reunidos para analisar os possíveis efeitos do novo coronavírus, saía (como noticiou o PÚBLICO) “uma mensagem de calma e ponderação.” Janez Lenarcic, comissário europeu para a Gestão de Crises, dizia até: “O risco aqui é muito baixo”. Mas preparavam-se para todos os cenários. Com calma e ponderação, naturalmente…
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Vigiar mas não exagerar, era a mensagem que nos chegava de Bruxelas em meados de Fevereiro. Do encontro dos ministros da Saúde dos 27, então reunidos para analisar os possíveis efeitos do novo coronavírus, saía (como noticiou o PÚBLICO) “uma mensagem de calma e ponderação.” Janez Lenarcic, comissário europeu para a Gestão de Crises, dizia até: “O risco aqui é muito baixo”. Mas preparavam-se para todos os cenários. Com calma e ponderação, naturalmente…
Agora que 2020 enfim termina, tudo isso nos parece pueril: a calma, a ponderação, o risco baixo e outros tantos anestésicos que só serviram para adiar a resolução de tão magno problema. Estamos agora, de agulhas em punho (valha-nos a ciência), a tentar remediar o mal causado, sabendo de antemão que nenhuma agulha curará o lastro de crise e ruínas que a “ponderação” não travou. Mas em finais de 2019 parecia haver uma incontrolável euforia face a 2020.
Os astrólogos e videntes, então, não mostravam dúvidas: “Vai ser um ano muito, muito bom”, “é um bom ano, 2020”, “muito positivo, a vida sorri-lhe”, “vem trazer novas surpresas”, “vai ser um ano de crescimento”, “será o melhor momento para promover tudo o que é trabalho”, “não existe, neste ano de 2020, um signo que seja mais negativo ou pior”, “no geral, é um ano bom para quase toda a gente”, “é festejo, é os amigos, é compromisso, é a socialização”… Ricardo Araújo Pereira, no seu programa Isto É Gozar Com Quem Trabalha, fez em 22 de Março um apanhado de curtos excertos de vídeos onde tudo isto (que é patético) pode ser comprovado. No Brasil, os astros também andavam loucos: “Em 2020 teremos muito sucesso”, “2020 tem tudo para ser bom, desde que nos dediquemos a isso”, “será maravilhoso para todos nós”, “mais leve do que 2019, não só para as pessoas, mas para o mundo em geral.” Mais leve, sem dúvida.
De que vale lembrar isto agora? Tiraremos lições destes enganos? Podemos tirar, sim. E a maior de todas é que os desejos são quase sempre formulados a pensar no eco que têm nas audiências. Boas previsões asseguram melhores clientes, e é só isso que justifica o desvario das antevisões para 2020, quando já havia avisos sérios para o perigo de eventuais pandemias. Investigadores alertaram, em artigos publicados na Nature em 2013 e 2015 para o perigo dos coronavírus, até porque o SARS-CoV e o MERS já tinham matado centenas. E até Barack Obama, que não é vidente nem cientista, alertou (ao discursar no National Institutes of Health, ainda na qualidade de presidente dos EUA, quando o mundo combatia o ébola) para a possibilidade de surgir “uma nova estirpe de gripe, como a gripe espanhola” dentro de uns cinco a dez anos. Isto em 2014.
Com tudo o que sabemos de 2020, podemos marcá-lo como “um ano para esquecer”, mas será melhor vê-lo como um ano para lembrar: as falhas, os enganos tolos, os prejuízos, as cicatrizes que demorarão a sarar (mortes, falências, desemprego), mas também o que de nobre surgiu e de algum modo foi apaziguando a dor (a abnegação dos profissionais de saúde, a solidariedade nascida de movimentos de voluntariado ou a criação múltipla da vacina mais rápida da história). Só unindo essas duas facetas teremos o ano completo. Ver apenas uma é amputar a realidade.
Um exemplo: o cineasta neozelandês Peter Jackson (O Senhor dos Anéis, O Hobbit) foi contratado pelos antigos beatles Ringo Starr, McCartney e as viúvas de Lennon e Harrison para refazer Let It Be. Ou melhor: para, a partir das 56 horas de filmagens que deram origem ao filme de Michael Lindsay-Hogg, produzir um novo filme. Se o original mostrava os Beatles numa fase crepuscular, de desentendimentos (que já tinham ditado o fim do grupo antes da estreia do filme, em 1970), o de Jackson privilegiará os momentos felizes, que também os houve, durante dos ensaios de Let It Be. Na curta antevisão do que será Get Back, a estrear em 2021, Peter Jackson diz querer “pôr-nos um sorriso na cara”, contrapondo um fim alegre ao fim triste (sem deixar de ser um fim). Quem se confortar com revisões da história, verá em Get Back o “verdadeiro” espírito do grupo. Quem preferir avaliar as duas faces (a boa e a má) desses dias, procurará na visão dos dois filmes a história completa. Essa será também a melhor forma de avaliar 2020.