Justiça 2020: sins e nãos
Do impacto da pandemia nos tribunais ao caso “Lex”, o inventário dos acontecimentos marcantes da justiça em 2020.
No fim do ano mais atípico das nossas vidas, é o momento do inventário dos acontecimentos marcantes da justiça em 2020. Não vou fazê-lo a partir dos casos mediáticos das primeiras páginas, que influenciam a percepção da realidade mas não passam de zero vírgula qualquer coisa do trabalho nos tribunais. Prefiro escolher três factos mais estruturantes, cada um deles com um pouco de bom e de mau.
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No fim do ano mais atípico das nossas vidas, é o momento do inventário dos acontecimentos marcantes da justiça em 2020. Não vou fazê-lo a partir dos casos mediáticos das primeiras páginas, que influenciam a percepção da realidade mas não passam de zero vírgula qualquer coisa do trabalho nos tribunais. Prefiro escolher três factos mais estruturantes, cada um deles com um pouco de bom e de mau.
Começo pelo óbvio: o impacto da pandemia nos tribunais. Vínhamos de sete anos de recuperação de pendências e morosidade processual, com redução do número de processos a cerca de metade e taxas de resolução médias bem acima dos 100%. Em Março, com o estado de emergência, receava-se que os tribunais entrassem em colapso e aqueles resultados se perdessem. Não aconteceu. Apesar do adiamento de muitos actos processuais e da necessidade de adaptar espaços e modos de funcionamento, o essencial do serviço no período mais crítico foi assegurado e no último semestre do ano já houve um regresso a números positivos. Porém, podia-se ter ido mais longe com relativa facilidade. Faltou fazer um levantamento completo dos actos processuais adiados ou atrasados, definir prioridades para o seu reagendamento e tramitação, em função da sua urgência e relevância social e económica e programar melhor a atribuição extraordinária de recursos humanos e logísticos. É previsível que entre 2021 e 2022 se recuperem os atrasos resultantes da pandemia, mas com uma planificação mais profissional chegava-se lá mais depressa.
O segundo facto que destaco é a aprovação e discussão da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção. Trata-se de um programa ambicioso e globalmente bem estruturado, que abrange, pela primeira vez, os aspectos da prevenção e repressão das acções corruptivas, nas dimensões da intervenção administrativa e judicial, nos sectores público e privado e nas vertentes nacional e internacional. O debate público sobre o combate à corrupção foi plural e participado e permitiu discutir as medidas projectadas pelo Governo e outras propostas entretanto avançadas. Agora falta o resto, que é quase tudo. É preciso ver que projectos de lei vai o Governo aprovar, quais passam no Parlamento e com que votos. Para mim, o teste do algodão vai ver-se com o destino que for dado à proposta de criminalização da ocultação de riqueza por titulares de cargos políticos ou equiparados, que não oferece dificuldades constitucionais e dá uma resposta eficaz às necessidades de transparência e moralização da vida pública. Toda a gente sabe quem são as pessoas que ao longo dos últimos 30 anos enriqueceram de forma inexplicável na política nacional e autárquica e andam por aí a rir-se de nós sem consequências. Essas e os amigos já devem estar no terreno a mover influências tentaculares para que aquela proposta seja enterrada no arquivo morto.
Deixo para o fim o acontecimento mais marcante e doloroso: o caso “Lex” e as suspeitas de corrupção na justiça. Apesar da desgraça que foi, teve aspectos muito positivos. Um sistema público como a justiça, que vive da confiança na sua integridade, revela mais saúde quando detecta e pune os elementos indesejáveis do que quando os esconde e tolera. O Conselho Superior da Magistratura actuou de forma decisiva, aplicando penas disciplinares expulsivas, adequadas a factos incompatíveis com o exercício da função judicial e iniciando procedimentos disciplinares para apuramento de outras eventuais responsabilidades. O seu presidente teve uma intervenção moralizadora no momento certo, com palavras duras e necessárias, que todos os juízes compreendem.
Há, no entanto, em tudo isto, aspectos preocupantes mal resolvidos. Se durante mais de 20 anos os mecanismos de controlo não permitiram detectar situações aparentemente notórias, o sistema falhou. Os órgãos de gestão e disciplina dos juízes têm de reconhecer isso rapidamente e de mostrar que são a solução e não o problema. Há muito que pode e deve ser feito para reforçar os mecanismos de prevenção e repressão de fenómenos corruptivos no judiciário. Há propostas fundamentadas e construtivas em cima da mesa que têm de ser discutidas. Uma matéria desta magnitude não pode ser normalizada no tratamento burocrático, lento e inconsequente dado aos assuntos corriqueiros. Infelizmente, um dia destes devo ter de voltar a este assunto com mais tempo.