O ano político de Angola
O surto do covid-19 veio apenas destapar as fragilidades governamentais e institucionais existentes no país, o que incrementou o nível de descontentamento social, levando as autoridades a usar meios coercivos de forma excessiva para conter a onda de protestos.
Uma análise do ano político de 2020, em Angola, pressupõe, desde já, reconhecer o impacto social e económico negativo causado pela crise sanitária da covid-19. A crise sanitária provocou a paralisia das actividades económicas e o encerramento das fronteiras do país, motivando mesmo a declaração do estado de emergência que, posteriormente, deu lugar ao estado de calamidade que vigora actualmente.
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Uma análise do ano político de 2020, em Angola, pressupõe, desde já, reconhecer o impacto social e económico negativo causado pela crise sanitária da covid-19. A crise sanitária provocou a paralisia das actividades económicas e o encerramento das fronteiras do país, motivando mesmo a declaração do estado de emergência que, posteriormente, deu lugar ao estado de calamidade que vigora actualmente.
A pandemia realçou um conjunto de fragilidades existentes em Angola, a começar pela fraca articulação institucional entre os poderes. Por exemplo, a primeira declaração do estado de emergência de 27 de Março foi alcançada através da Comissão Permanente da Assembleia Nacional, quando devia ter sido estabelecida numa sessão plenária da Assembleia Nacional (AN) que poderia ser convocada, extraordinariamente, pela Comissão Permanente. A suspensão das sessões plenárias da AN constituiu-se, em certa medida, como um acto de obstrução política e institucional à possibilidade de o Presidente solicitar ao Parlamento autorização para ser decretado o estado de emergência.
A forma de superação desta obstrução careceu de legitimidade e assumiu-se como um incumprimento do quadro constitucional angolano. Porquanto a Comissão Permanente padece sempre de legitimidade e de representatividade política suficiente para autorizar os estados de excepção constitucional.
A crise sanitária colocou ainda em evidência a fragilidade governativa, precisamente, a forma de adopção de um conjunto de medidas, entre elas, o dever de isolamento social e o uso de equipamentos de protecção individual (máscaras), fora do contexto real do país, sem considerar os défices sucessivos acumulados ao longo de vários anos de má gestão do país, afectando mormente os sectores da saúde e as condições sanitárias das populações. Por isso, muitas das medidas avançadas acabaram por ser actos de pura fé técnica-legislativas cujo cumprimento por parte da população não se verifica até hoje.
Para o Governo, obrigar ao cumprimento de tais medidas por parte da população colocou, na linha da frente do combate à pandemia, os membros da defesa e segurança. A envolvência das forças de defesa e segurança acabou por vitimar cidadãos que “supostamente” não estavam a cumprir com as medidas decretadas. A morte do médico João Dala, em Setembro, por não estar a utilizar máscara no seu carro, acabou por gerar uma onda de protestos e manifestação mediática (a ponto de obrigar a retirada da medida da utilização da máscara no carro). Já em Julho, um jovem no Bairro do Prenda (Luanda) tinha sido baleado pela polícia por “suposto” desrespeito das medidas determinadas pelas autoridades.
O nível de descontentamento social e político foi agravado pela pandemia, motivando a realização de diversas manifestações encabeçadas pela juventude angolana, principalmente as de 24 de Outubro e 11 de Novembro, que foram, fortemente, reprimidas pelas autoridades policiais. A última manifestação provocou mesmo a morte de Inocêncio de Matos, estudante universitário.
Este contexto pandémico possibilitou a utilização excessiva da força, o que causou prejuízos irreparáveis para a sociedade angolana. De forma a acalmar os ânimos e procurar redimensionar a sua imagem pública e política, o Presidente João Lourenço realizou um encontro com alguns jovens. No entanto, no dia 10 de Dezembro (dia da criação do MPLA), os jovens saíram, mais vez, à rua e manifestaram-se no largo do 1.º de Maio, onde subiram até à estátua de Agostinho Neto.
A gestão presidencial de João Lourenço, em 2020, durante a pandemia, caracterizou-se pela tentativa de contenção dos níveis de insatisfação de certos sectores, desdobrando-se em encontros com elementos da sociedade civil (líderes religiosos inclusive), a ponto de ter criado o Centro de Estudos Económicos e Sociais. Não foi, ainda assim, de apresentar medidas políticas e económicas para suprimir o forte impacto social da crise sanitária.
O surto da covid-19 veio apenas destapar as fragilidades governamentais e institucionais existentes no país, o que incrementou o nível de descontentamento social, levando as autoridades a usar meios coercivos de forma excessiva para conter a onda de protestos. Ainda assim, a crise sanitária não foi capaz de desfazer a crença angolana da necessidade de um Presidente visto como o “salvador da pátria” e, por isso, todos os actos de convocatória de encontros do chefe de Estado, seja com a juventude ou com outros elementos da sociedade civil, foram, prontamente, atendidos.