2021 e covid-19: testes e lições
Resposta local, assertiva e rápida. Completemos o puzzle da resposta à covid-19 com as ferramentas que temos à disposição. Já temos lições de sobra do que acontece com hesitações na resposta.
2020 trouxe-nos a “Doença X”, dois anos apenas depois da sua inclusão numa lista da OMS como ameaça pandémica desconhecida. Em 2019, um conjunto de profissionais, entre saúde pública e veterinária, também avisava no PÚBLICO da importância da chamada One Health e das ameaças convergentes no mundo do ambiente, saúde pública e veterinária.
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2020 trouxe-nos a “Doença X”, dois anos apenas depois da sua inclusão numa lista da OMS como ameaça pandémica desconhecida. Em 2019, um conjunto de profissionais, entre saúde pública e veterinária, também avisava no PÚBLICO da importância da chamada One Health e das ameaças convergentes no mundo do ambiente, saúde pública e veterinária.
A terminar este ano, em que o golpe duplo em saúde e economia nos deixou cercados, tivemos o desembarque das vacinas no “dia V”. Ao contrário do desembarque massivo no dia 6 de Junho de 1944, teremos uma chegada progressiva de reforços imunitários que nos deixarão com uma estrada longa até chegarmos a uma imunidade de grupo que, recordemos, será algures entre 60 a 70% da população. Neste aspecto da imunidade de grupo, vale a pena relembrar o trabalho de Gabriela Gomes que, ainda que não tenha previsto adequadamente o comportamento populacional, nos relembra que o vírus já bateu muitos caminhos de infecção e que esses roteiros nos poderão oferecer alguma protecção em próximos ciclos, reduzindo limiares.
Em 2021, temos a promessa de vitória colectiva sobre o vírus mas temos ainda um demasiado longo Inverno pela frente, período de eleição de vírus respiratórios sazonais. Em Portugal superámos o pico da 2.ª onda mas o ritmo de novos casos diários estacionou em patamares elevados. Sabemos o que isto significa: novos ciclos de infecção arrancam de uma base maior de multiplicação e, com a devida décalage, internamentos, sistema de saúde sob pressão, excesso de mortalidade directa e indirecta. Pelo meio, nova hemorragia na economia com mais restrições para achatar a curva. Com lições de duas ondas para a pandemia, não podemos perdê-las para uma terceira.
Temos, por isso, que estar preparados. É verdade que hoje estamos muito mais capacitados do que em Maio ou Setembro, mas devemos tirar maior partido disso. Amiúde corremos atrás do prejuízo e chegámos frequentemente tarde. A vitória conceptual da estratificação de risco trouxe a possibilidade de responder de forma heterogénea à propagação que também o é. Foram reforçadas capacidades de rastreio, foram criadas equipas de resposta aos lares, foi aumentada a capacidade de testagem. Pode ser discutido o tempo que demorou mas foquemo-nos no que falta.
A comunicação tem sido abundantemente criticada. Ainda se esperam melhorias, sobretudo quando temos o desafio da vacinação. A estratificação de risco pode ser melhorada e, nesse âmbito, abrir a possibilidade da testagem ser mais alargada. Retirar precocemente sementes infecciosas da população acaba por funcionar como uma forma de “vacina” para terceiros, ainda que não estejamos a proteger do impacto os já expostos. A testagem regular com instrumentos de resposta rápida, sejam eles quais forem, permite abreviar o ciclo de decisão perante suspeitas ou mesmo em áreas em que esteja assinalada uma proporção elevada de positividade e/ou de casos sem ligação epidemiológica a outros.
A questão da testagem ganha eco num documento da Comissão Europeia de 18 de Dezembro, com recomendações e indicações claras para os testes rápidos de antigénio, com características muito mais favoráveis em termos de custo e mesmo de resposta entre marcação, execução e conhecimento de resultado. Mais, é a própria Comissão que disponibilizará, a partir de Janeiro, 20 milhões de testes aos Estados-membros que os solicitem. A Estratégia Nacional de Testes para SARS-CoV-2 já engloba o uso dos testes rápidos, mas ainda se centra, de forma compreensivelmente conservadora, no rt-PCR como padrão. No entanto, chegou o momento de desfazer o estigma face a testes que, ainda que tenham menor sensibilidade, possam ser feitos de forma muito mais económica (o custo pode ser dez vezes menor), de execução mais simples e de resposta mais rápida. Seja em contexto hospitalar, cuidados de saúde primários, equipas de saúde pública, saúde ocupacional ou outros. A célebre frase de Michael Ryan, director executivo da Organização Mundial da Saúde em Março de 2020, “Speed trumps perfection”, acaba por ser a melhor forma de sintetizar os ganhos que temos em generalizar a testagem e facilitar o seu acesso.
Existem preocupações justificadas com a qualidade dos testes, que tem de ser salvaguardada (e é, pelo Infarmed), assim como a questão da notificação dos mesmos em plataforma adequada, sejam negativos ou positivos. Michael Mina, professor em Harvard, tem sido uma das vozes mais vocais na questão da abertura dos testes e tem defendido a ideia de “imunidade induzida pela testagem”. Tal como já foi abordado, a detecção precoce de infecção protege X pessoas de exposição e provável infecção. Ao introduzirmos mais testagem, sobretudo de forma direccionada em áreas com elevada incidência, podemos responder mais cedo e evitar problemas maiores.
Duas experiências colectivas devem ficar-nos na memória: a testagem nacional “one-shot” da Eslováquia pode não ser a melhor abordagem porque o investimento é massivo e o tempo único deixa margem para incubações não detectadas fazerem o seu caminho; a experiência em Rabo de Peixe, em que a assertividade das autoridades permitiu rapidamente testar centenas de indivíduos e “apagar o fogo” antes que continuasse a lavrar na comunidade e até expandir para áreas circundantes. Não escondamos que os desafios logísticos destas duas experiências são tremendos: devemos aprender com elas. No entanto, abordagens similares, em locais com boa estrutura coordenada entre saúde pública, cuidados de saúde, autarquias e protecção civil, poderão ser um dos elementos que falta no puzzle da resposta: integrar na estratificação de risco, ainda melhor se com conhecimento de casos sem ligação epidemiológica, rastreios focados com testes rápidos e evitar uma escalada local, regional e que até pode ser nacional.
Resposta local, assertiva e rápida. Completemos o puzzle da resposta à covid-19 com as ferramentas que temos à disposição. Já temos lições de sobra do que acontece com hesitações na resposta.